quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Tecnologias: nem proibidas, nem obrigatórias. Por um uso consciente e humanizado

Por Michelle Prazeres*

Vivemos numa era em que as telas são aparatos cada vez mais pessoais e fazem parte das nossas vidas cada vez mais cedo. Não dá para ser contra as tecnologias, porque elas estão aí e fazem parte de nossas vidas; mas também não precisamos nos entregar aos delírios de consumo e nos fazermos reféns. Especialmente para lidar com as relações entre a infância e as tecnologias, enquanto mães e pais, precisamos exercer nosso papel de mediadores e guardiões destas crianças. Mas como?

No campo da educação (especialmente a educação formal escolar) é recorrente o discurso de que as tecnologias são inevitáveis e que vem adentrando os espaços educativos “naturalmente”, na medida em que as novas gerações (que seriam “nativos digitais”) estão estabelecidas nas escolas.

Mais do que o ideário sobre a inserção “natural” das tecnologias, paira no ar uma crença de que as tecnologias podem “salvar” a educação, aproximando a linguagem e os métodos educacionais do que seria um universo discursivo mais “próximo” das crianças e jovens, pelo fato de ser algo que traz, para o ambiente “chato e hostil” da educação algo “lúdico” e que “faz parte do universo infantil”.

Coloquei entre aspas nos dois primeiros parágrafos deste texto as expressões e ideias que – a meu ver – são passíveis de problematização. Mas é fato que este é o discurso comum para vários setores da sociedade que veem com muita naturalidade as tecnologias adentrando os espaços educacionais formais.

Fiz uma pesquisa e entre os achados dela, está o fato de, por exemplo, a mídia, as empresas, o poder público e a Universidade estão falando sobre as contribuições (positivas, sempre) que as tecnologias podem oferecer aos processos educacionais.

É comum vermos este discurso de “idolatria” das tecnologias em outros setores da sociedade. Na medicina, por exemplo, é muito comum ver uma espécie de endeusamento das tecnologias “que salvam vidas”. E, em nome das que salvam vidas, “tecnologiza-se” tudo.

De que tecnologia estamos falando?

Talvez seja importante a gente conversar sobre o que é tecnologia. São muitas as correntes científicas que buscam definir o que elas são. Mas aqui, para nós, e para esta conversa sobre as relações entre tecnologia e infância, talvez seja bacana pactuarmos que estamos falando especialmente das tecnologias de telas.

Porque sim, nossas crianças nasceram em um momento que algumas pessoas chamam de Era da Informação, em meio ao que outras chamam de Cultura digital ou de Cibercultura. São as tais crianças “nativas digitais” (não gosto muito deste termo, tá?). Se formos falar de qualquer tecnologia, estamos todos convivendo com elas desde a Idade Média, então, seria legal a gente combinar aqui que esta discussão específica é sobre as telas. ;)

É fato que hoje, vivemos num momento de exacerbação tecnológica, com a proliferação dos aparatos móveis e pessoais. Cada um tem um celular e alguns ainda têm um tablet e um computador pessoal. O consumo da tecnologia se individualizou. Além disso, ele se expandiu pelas diversas faixas etárias. E é cada dia mais precoce.

Imagem: Freepik

Mas qual seria a idade ideal para começar a consumir tecnologias? Existe isso?

Olha... eu li o texto que a Anne Rammi publicou por aqui  e me senti bem contemplada pela leitura sensata que ela traz com base na experiência cotidiana de quem tem filhos e consegue promover um uso consciente das tecnologias.

Penso que nós (mães e pais) precisamos entender que estamos em um mundo povoado por estas tecnologias. Que nossos filhos – especialmente aqueles em idade escolar e que já tem contato com outras instâncias de socialização que se relacionam com as tecnologias – estão o tempo todo em contato com estes aparatos e telas. Não podemos tentar “salvá-los” deste contato. Então, talvez o modo mais bacana de olhar para isso seja reconhecendo nosso papel de mediação.

E esta mediação vai desde buscar entender qual a idade certa para eles terem aparelhos próprios (e aí, entra a decisão de cada família); e passa por estar sempre por perto para mediar conteúdos (assistir junto, problematizar, comentar sobre o que viram, não deixar entrar em contato com conteúdos não classificados para a idade). Passa também por entender qual o tempo ideal de exposição das crianças às telas.

E, passa, sobretudo, pelo que, para mim, é uma das principais questões em jogo quando a criança passa a consumir tecnologia (e os conteúdos que circulam pelas telas) sozinha: a segurança.

E para fazer esta mediação (seja do consumo dos aparatos, seja dos conteúdos) precisamos estar minimamente apropriados deste universo.

E como se apropriar para mediar?

Talvez o primeiro passo seja reconhecer a tecnologia em todas as suas dimensões. As telas são aparatos ‘concretos’, mas carregam consigo conteúdos (todo um universo simbólico) e modos de percepção (esquemas lógicos, por exemplo, que dependem de programas e softwares que usamos).

Para mediar, é preciso ter em mente que as potencialidades das tecnologias não são apenas negativas. Existem usos bacanas e possíveis da tecnologia, para melhorar processos em casa, para brincar e para estudar. Costumo dizer que precisamos olhar para o potencial humanizante das tecnologias.

Aqui em casa, por exemplo, evito telas ao máximo (o mais novo nem sabe o que é isso ainda, claro). Mas desde muito cedo, Miguel usa os celulares e telas para conversar com a família, que está longe, espalhada pelo Brasil. Desde muito pequeno, ele pede para fazer “Facetime” com a vovó e com os tios. Há como recriminar este uso da tela mesmo que seja por uma criança de 2 anos?

Precisamos de menos julgamentos. Precisamos que cada família se sinta confortável como mediadora da experiência de cada criança com as telas e seus conteúdos. Mas precisamos também que estas escolhas sejam feitas com consciência e informação.

Nesse sentido, e avançando no argumento de que, enquanto pais e mães, precisamos conhecer para mediar, devemos entender quais os possíveis riscos envolvidos no consumo de telas tecnológicas.

A pesquisa do Cetic.Br chamada TIC Kids online  nos traz algumas informações preciosas nesse sentido.

Segundo este levantamento (que abrange as crianças e jovens de 9 a 17 anos), a maioria delas usa telas e internet “todos os dias ou quase todos os dias”, acessando especialmente do celular e de tablets e fazendo isso a partir de suas casas. Os principais usos são para “rede social, trabalho da escola, pesquisas e mensagens instantâneas”.

De posse desta informação, seria interessante pensarmos nos riscos que estes acessos podem envolver. E a pesquisa enumera três exemplos: (1) tratamento ofensivo; (2) contato com mensagens de ódio; e (3) exposição de informações pessoais. Pensando nos riscos, conseguimos pensar também nas principais medidas de segurança de que podemos lançar mão.

Claro que estas são questões para crianças mais velhas. Para crianças mais novas, penso que devemos fazer um uso mediado e consciente, na linha do que a Anne Rammi propõe em seu texto, ajudando-as a problematizar alguns conteúdos e evitando que estejam muito expostas a outros. Aqui em casa, por exemplo, eu costumo obedecer à classificação indicativa do Ministério da Justiça, evito televisão aberta (por conta da propaganda abusiva) e invisto em desenhos e musicais, tentando filtrar conteúdos mais violentos. Jogos são mais raros.

No caso de bebês e crianças mais novas, existem uma série de estudos que mostram que muita exposição às telas trazem consequências para o brincar (mais restrito), para a criatividade e para a construção de raciocínio destas crianças. Eu acredito que temos um vasto trabalho de conscientização e informação sobre acesso e uso de telas para que as escolhas de mediação sejam escolhas informadas.

O que eu acho importante é a gente entender que enquanto mães e pais, somos mediadores; que esta mediação deve ser consciente e informada e que cada família deve ter tranquilidade para decidir o que é melhor para suas crianças, ainda que pense igualmente que o Estado tem um papel fundamental na construção de políticas de informação e proteção à infância (este item rende um texto à parte sobre a ausência do Estado na regulamentação do setor da comunicação).

Acredito também que cada família tem direito à paz interior e a não ser julgada socialmente por oferecer telas a seus pequenos.

Vale lembrar que a tecnologia nem nos salva, nem nos condena. A chave são os usos que fazemos dela. Os usos são de cada um e cada uma. De cada coletivo. De cada família. De cada grupo, cada sociedade. Cada grupo conhece seu contexto e suas possibilidades e limitações. Avancemos nos apoiando e nos informando, sem julgamentos. E estas escolhas tendem a ser muito mais saudáveis para nós, para nossas crianças e para a sociedade.





* Michelle Prazeres é jornalista, professor e Doutora em Educação, mas sua melhor credencial é a de mãe do Miguel (5 anos) e do Francisco (5 meses).

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Crianças e Tecnologia por Ana Cristina Duarte

Eu tenho visto as crianças crescendo, não só as minhas, mas várias que fui atendendo como doula e parteira nos últimos 12 anos. Fui observando e entendendo diferentes formas de criar os filhos em tempos de tecnologia.

Precisamos antes de tudo pensar em faixas etárias. Crianças pequenas precisam ter contato com o mundo real, com os objetos, com panelas, com potes de plástico e colheres de pau. Precisam ir para os parques e praças e seus pais precisam fazer um esforço especial de prover a eles o espaço e o tempo de brincar. Esse esforço vai se compensar no futuro com crianças criativas e capazes de se entreter com coisas muito simples.

Crianças maiores já podem começar a ter contato paulatino com as tecnologias, mas não haverá nunca o tempo em que os pais vão se descuidar dessa questão. Porque as telas encantam, sugam a atenção, porém limitam a imaginação. O conteúdo vem formatado, desenhado, colorido e sonorizado. Não sobra espaço para pensar muito. Por outro lado existem outros tipos de tecnologia que são muito interessantes de serem apresentados para as crianças, como os brinquedos de aprendizado, para fabricação de robôs, circuitos elétro-eletrônicos e assim por diante.

Não vamos achar que crianças vão ver os pais o dia todo no celular e vão se encantar com um banco de areia. Por isso é imprescindível que os pais dediquem tempo seus filhos, para brincar junto, para estar junto e para criarem juntos.

Ana Cristina Duarte
Obstetriz



Imagem: Freepik

terça-feira, 4 de outubro de 2016

Crianças e Tecnologia: usando bem que mal tem? Mas eu sei usar bem?

**Por Anne Rammi** 

Eu olhava com empáfia todos os casais que eu via nos restaurantes neutralizando a criança atrás da tela do celular. Achava aquilo o cúmulo do absurdo, onde já se viu, num momento de família como a refeição preferir ou permitir que o filho se aliene dessa maneira, correndo todos os riscos que as pesquisas já comprovam, desde transtornos alimentares até todo o derretimento do cérebro! (ok eu não lembro exatamente o que versam as pesquisas, mas que tela faz mal para a criança, isso ninguém vai contestar).

Acontece que minha empáfia passou no dia em que eu desejei que meu carro fosse equipado com televisões no banco de trás, dessas que a gente vê nos carros da riqueza, depois de algumas horas da viagem farofenta onde meus três filhos alternaram entre brigas, socos, pontapés, choros, catarses, tédio, vômito e cocô na calça, presos em um congestionamento interminável.

(Trecho do meu diário)

Aquelas cenas que só acontecem no carro dos outros. Ou nas propagandas.

Hoje vou contar um pouco, sob minha experiência como mãe, artista plástica, comunicadora, documentadora pedagógica, pesquisadora da infância e ativista pela proteção da criança contra a publicidade infantil, de como enxergamos a relação entre infância e tecnologia.


  • Não existe dissociar a criança da tecnologia para as famílias que optaram por criar seus filhos nos ambientes urbanos e, per se, tecnológicos.
  • Até porque, a teconologia bem aplicada é uma ferramenta de linguagem maravilhosa e poderosa. 
  • O que existe é a necessidade (e a urgência) de uma profunda reflexão sobre quantidade, qualidade e finalidade da interação entre crianças e tecnologia.
  • Tipo, escola com televisão para "distrair"a criança. Ou escola que apresentra trechos de filmes ou vídeos contextualizados nos processos que as crianças estão vivendo? Ou ainda, escola que oferece o audio visual como linguagem curricular. Tem uma baita diferença né?
  • Eu entendo tecnologia desde o celular, passando pelos tablets e TVs, produtos culturais ou games, porventura aquelas aulas de robótica das escolas contemporâneas, passando pelas câmeras fotográficas e o espremedor de laranja.
  • Mas a regulação que me interessa em casa é em especial relacionada às telas, e em algum tempo (meus filhos ainda não foram impactados por essa demanda) às redes sociais.
  • A melhor prática que eu adotei quanto às telas foi: adiar o contato o máximo possível. O quanto mais tarde o contato melhor. Telas são realmente viciantes e as crianças precisam se esforçar bastante para cumprir os combinados de tempo e conteúdo. Não é fácil para eles, não sendo fácil, é preferível que estejam mais maduros para lidar.
  • Uma vez apresentados às telas sempre fazemos combinados claros.
  • Um deles é que não se usa tela para nada além de se usar a tela. Ou seja: a tela não é acompanhante de sono, banho, comida, nada disso. Se está jogando, está jogando e só.
  • Isso alimenta minha ilusão de que estou fazendo o melhor possível no quesito mindfulness com crianças abaixo dos seis anos que super curtem uma Tv e um joguinho.
  • Quanto aos horários: em casa, Tv à noite funciona melhor que Tv de manhã hoje em dia. Mas houve um tempo em que se assistissem televisão à noite, não dormiam. 
  • Quanto ao tempo de exposição: descobrimos um limite e aqui em casa gira em torno de 2h. Mais do que isso a criança azeda, estraga, fica duríssimo de lidar depois. 
  • Quanto ao conteúdo: temos (sem dó nem piedade, num esquema nada democrático) proibido alguns temas de acordo com os valores de nossas famílias. Por exemplo, conteúdos machistas são imediatamente banidos das listas "do que assistir". E haja sermão da mãe explicando que aquele desenho está equivocado quando diz que menina gosta de arrumar a casa e menino gosta de jogar bola.
  • Em casa tem um calendário semanal marcado quando são os horários das telas. Atualmente eles respeitam bem o calendário e sempre pleiteiam mudar as regras, o que eu acho construtivo e fofo. Às vezes eles ganham, e eu apelo para a finalidade: A Tv nesse momento é muito importante para a mamãe conseguir descansar (mentira, arrumar a cozinha, quem eu estou enganando?).
  • A mesma regra do "adiar" vale para o tipo de conteúdo. Se aos dois anos você já liberar os "Avengers" não há "Pokemon" que sustente os quatro anos. Vá devagar, e perceba que quanto mais estimulante, mais estímulo a criança demanda.
  • Os games são outra relação de interface, bem diferente dos desenhos, e se requintam na dificuldade de fazer os combinados. Exatamente porque demanda uma interação e estão programados para fazer a criança consumir (vidas, águia poderosa, sei lá mais o que). A relação com os games é segunda fase, módulo avançado. Eu acredito que, idealmente, quanto mais tarde melhor. Imagino que isso deva acontecer também com as redes sociais, mas ainda não cheguei lá.
  • Uma coisa legal de saber é que quanto menor a tela, mais alienada a criança fica. Então, para viver no inferno sem abraçar o diabo, prefira video games ligados na Tv, por exemplo, que a família possa brincar junta, ao joguinho no celular. 
  • Mas é aquilo, normal, se no meio de uma viagem farofenta você sentir o desejo incontrolável de usar a tecnologia para manter sua sanidade. Só saiba que uma vez aberta, essa porta é um saco para fechar.
  • Aqui em casa as crianças não mexem no meu celular, e um dos grandes motivos, além da alienação, é que se trata de um equipamento do meu trabalho. Mentira, eu não ligo para a alienação, eu só não posso comprar um celular novo caso um dos pentelhinhos derrube o troço na privada. Essa é uma regra clara que eu consigo bancar, o pai tem menos apego, e um celular bem mais pobre. Então tende a liberar de vez em quando.
  • As minhas grandes preocupações e motivos pelos quais eu acredito que é preciso sim refletir, discutir, regular e mediar o contato com a tecnologia na verdade não estão ligadas ao que dizem "as pesquisas" sobre o desenvolvimento infantil, muito embora eu acredite nelas. Minhas preocupações são: publicidade infantil e pedofilia.
  • A tecnologia do jeito que nos é dada, da forma como chega naturalmente na vida das crianças é muito perniciosa. Ela é uma ferramenta da publicidade para coagir a criança e formar um comportamento consumidor. Seja no boneco licenciado que conta lindas histórias no desenho animado mas vende carne que provoca câncer no supermercado ou seja no joguinho aparentemente inofensivo que monitora comportamento de consumo e trajetos da criança e repassa dados para as corporações.
  • É com essa tecnologia que eu me preocupo, que serve para atuar na mente dos meus filhos para formá-los para o consumo antes que estejam formados para a cidadania. Por isso eu sempre vou sonhar com (e defender com unhas e dentes) a regulação efetiva da publicidade infantil. 
  • O Brasil é campeão mundial em pedofilia. 70% da internet de conteúdo pedófilo é hospedada no Brasil. O uso das redes e da tecnologia precocemente e sem acompanhamento coloca as crianças em risco, é simples assim. 
  • Além dos casos graves de estupro e assédio contra menores de idade via web, uma criança mal assistida no uso da tecnologia pode ser alvo fácil para conteúdo impróprio: pornografia, ainda que defendida pelo liberalismo, é uma ferramenta de construção de uma masculinidade opressora e violenta. Não é ok nenhuma criança em nenhuma idade (nenhuma pessoa na verdade) ter acesso à pornografia nos modelos que conhecemos, que são degradantes à mulher e ameaçam a segurança física e emocional de todos os envolvidos. 
  • Infelizmente a tecnologia que nos proporciona aprender, compartilhar, criar e ampliar nossos horizontes, também nos expõe a problemas reais na vida contemporânea.
  • Enquanto não há regulação efetiva - por exemplo, a proibição da publicidade infantil, contemplando sanções para infrações digitais também - teremos que regular em casa mesmo.



Claro que eu estou propositadamente resumindo uma longa reflexão de mais de seis anos sobre infância e tecnologia em tópicos sucintos. Existem muitas vertentes que podem ser contempladas nesse cenário. Mas hoje consigo me afastar do julgamento individual contra a família que alimenta a criança atrás da Peppa - ainda que eu continue achando isso um absurdo. Consigo encontrar onde estão os pontos inegociáveis dessa relação aqui na minha casa, como para mim é o caso do celular ou dos conteúdos machistas e violentos. E consigo acompanhar o desenvolvimento de meus filhos no mundo em que vivem, e não naquele que eu acho que seria melhor para eles. E claro, sigo sonhando com DVDs no banco de trás do carro. Mas só para os casos de acidentes na pista.

PS: Não posso deixar de registrar meu desprezo total por penico com tablet, mas o texto era sobre crianças e tecnologias e não sobre as fronteiras da estupidez humana. ;) 




sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Como ser pai do meu filho tendo sido filho do meu pai

Homens sem filhos, quando decidem que um dia os terão, ou são surpreendidos quando descobrem que serão pais, imaginam que um dia dobrarão essa barreira do desconhecido, se dividem geralmente em dois grupos distintos.

Ou questionam tudo que lhes foi feito na infância, sonhando com uma renovação plena do papel de pai e com filhos idílicos (que só poderiam ser mesmo filhos da falta de realidade), ou concordam cegamente com seus modelos de pai. Simplesmente não questionam. Não param para pensar nisso. Principalmente quando sua história como filho, tem um pai ausente.Principalmente numa sociedade que não enxerga a paternidade como algo importante e muito bom de ser vivido.Quando a sociedade concorda que o importante é a MÃE !

A consciência de que é preciso saber transitar entre os papéis de pai e filho, inclusive quando se é pai sendo filho e filho sendo pai, é algo que só acontece em algum momento, estranhamente, de ser pai e filho.Quando ao nascer seu filho você se depara com esse novo papel : Sou pai agora !

Confuso?

Oras: ser pai do meu filho é ser filho do meu pai ao mesmo tempo. Existem momentos em que eu, como pai, questiono o que me foi feito como filho. Quem era meu pai ? Quem serei eu como pai? Esse sou eu, sendo pai e sendo filho. E há momentos em que acato tudo o que meu pai disse, porque agora filho, tenho eu. Me perco na diferenciação entre eu e meu pai. Entro em conflito com as minhas memórias, pois ha magoas do filho guardadas. Mas talvez agora seja tempo de acolhe-las e tentar curá-las. E consigo atingir dentro de mim a lucidez de ser pai que foi possível ao meu. Esse sou eu, sendo filho e sendo pai.

Transitamos, quando os filhos nascem, para um outro lugar, e a ideia de que abandonamos o antigo é às vezes motivo de confusão de sentimento: essa bagagem carregaremos para sempre, de ter sido filho de alguém que enquanto era pai, também foi filho de alguém. Transmiti-se a cada geração um modelo familiar de "Pai", os homens da família. E na busca do próprio modelo teremos que conhecer este legado familiar para poder absorver e romper com ele. O difícil de conhecê-lo é que geralmente é uma lembrança de magoa ou dor ou ainda de ser superior.

Questionar e acolher o passado na vida presente. Sim e não. Pai e filho.
São essas as dicotomias que precisamos aprender a lidar com saúde. Com alegria!
É isso que faz da gente melhores pais para nossos filhos, por perdoar nosso pai. Ao fazer isso podemos perdoar nossos erros. É isso que faz da gente filhos melhores para nossos pais, por humanizar nosso filho, humanizamos nossas relações parentais. Deixamos uma herança mais leve!

Esse documentário é sobre como somos preparados para crescer como homens nesta sociedade. Não é apenas sobre a sexualidade masculina, mas principalmente sobre o cidadão homem, o ser humano homem e a solidão de ser homem!
A pergunta é: Sou um cara legal comigo?
As outras são mais fáceis de responder!





Nesse sábado, na Roda de Pais do Espaço Nascente falaremos de Heranças!
Venha contar sua historia ou apenas ouvir as histórias.
Venha perceber que são varias possíveis histórias.
Venha correr o risco conosco de poder mudar essa história !
Venha !


Ilustração Rodrigo Bueno 


quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Cocô com hora marcada

Quem tem algum contato com os pequeninos conhecem suas necessidades constantes de cuidado básico. Atenção com seu ritmo, alimentação, descanso e higiene são conteúdos intrínsecos à primeiríssima infância, tão importantes quanto brincar, relacionar-se com o colega, construir as bases para o desenvolvimento sadio.Grandes desafios para os pais .

No entanto, quando observamos o contexto escolar, nos deparamos muitas vezes com propostas massificantes e potencialmente perigosas: vocês já ouviram falar de desfralde coletivo?

Imagem encontrada no Pinterest

Não cansamos de repetir que cada criança é única e que um acompanhamento presente de suas necessidades e particularidades é a base para esse crescimento? Como pode então uma escola propor que todas as crianças sejam obrigadas a usar o banheiro - o que implica em aquisição de um controle fisiológico que é impossível de forjar, o controle de esfíncteres - no mesmo tempo? Na mesma "idade escolar"? Como supor que fazer aniversario de 2 anos transforme uma criança em outra criança ?

Isso fala para muito além de uma prática prejudicial à criança. Isso se trata de um profundo desconhecimento social, que ecoa com muita força nos espaços coletivos, do que é ser criança. Isso se trata, em última instância, de uma profunda falta de respeito. Um abuso sem precedentes.

Mas ora, como farão os profissionais da educação infantil, cuidando de quarenta crianças ao mesmo tempo se cada uma delas tiver um horário diferente, uma necessidade diferente. Pois é. Como farão? 

Me surpreende - mas nem tanto - que os problemas sejam resolvidos repassando para os mais fracos todo o ônus. Quer dizer que para viabilizar a rotina massificada da escola infantil estamos propondo, de novo, desrespeitar a criança? Li comentários de alguns sobre essa questão do desfralde dizendo:
- Coitadas das educadoras(funcionarias da creche) que tem que então trocar fraldas de crianças ate 5 anos !!! Tentei ser solidário ao comentário mas realmente me pareceu que a educadora coitada era mais criança que a própria criança neste caso.Coitad@ ?Que lugar ocupa este adulto? Esta nesse lugar de adulto de cuidar de uma criança com suas peculiaridades e é vista como coitada ?

Já não basta que tenham nascido fora de trabalho de parto muitas vezes por cirurgias mal indicadas, fora de seu tempo de maturação. Já não basta que lhes tenha sido negado o direito ao seio materno imediatamente ao nascer, que tenham sido picados, medidos, sugados e cutucados sem necessidade. Já não basta que tenham ficado horas chorando nos bercinhos aquecidos. Não basta que tenham sido obrigadas a mamar na hora que era conveniente para os adultos, para os profissionais de saúde envolvidos inclusive. Não basta que tenham ficado amarrados em carrinhos e cadeirinhas para não dar trabalho. Também não basta que tenham decidido que exatamente aos seis meses deveriam estar prontos para comer. Já não basta que não tenham sido jamais respeitados em seus desejos básicos de fome, de sono, de movimento. 

Vamos também corroborar que tenham prazo para aprender a fazer xixi e cocô no vaso?

Na prática, por mais bizarro que isso possa parecer, nosso conhecimento coletivo sobre infância e direitos é muito parco e recente, e por isso essas sandices tomam proporções aumentadas. 

Até poucos séculos a criança era apenas um adulto mal formado, alguém que ainda não estava pronto, alguém que precisa de muita ajuda de alguma boa alma caridosa para superar o estorvo de não ser grande. Políticas públicas para a infância, são coisas extremamente atuais. Infelizmente, numa retomada conservadora do nosso atual cenário, estamos vendo que os paradigmas para a educação infantil vem acompanhando esse ideário medieval, anulando as tímidas conquista. Por exemplo, existe no governo atual a ideia de que a primeira dama - por sua característica supostamente solidária e benevolente - será a "embaixadora" dos projetos sociais para crianças pequenas.

Cena do videoclipe Another Brick in The Wall de 1979 - crítica ao sistema de educação massificado

Ou seja: não se trata mais de conhecer, investigar, estudar e aplicar políticas multidisciplinares para um grupo da população. Se trata de colocar uma boa moça para "ajudar". É essa mentalidade, de que crianças não são cidadãos de direito, e sim coisinhas esperando para crescer, que valida  práticas absurdas, como o desfralde coletivo, e tantas outras.A boa moca por sua vez precisa ser poupada da criança mais lenta ,no seu ritmo natural, pois coitada da boa moca .

Não custa lembrar que para o sistema social em que vivemos é extremamente importante que os seres humanos nasçam e cresçam sob o estigma do controle de outro alguém. O desfralde coletivo, tal qual as outras práticas absurdas na infância trabalha para esse projeto de mundo opressor e indigno.

Por favor, respeitem as crianças como os seres humanos que são. 

terça-feira, 13 de setembro de 2016

A Culpa é da Mãe! Onde está o Pai?

PARTE 1

Antes de iniciar a nossa série de conversas “A Culpa é da Mãe!” e “Onde está o Pai?” precisamos introduzir um modo de pensar distinto do jeito frequente de pensar as crises e dúvidas diante dos acontecimentos do nosso dia a dia, principalmente quando se fala de filhos.

Vamos começar com um exemplo:
Pense em uma criança, um menino com seus 3 anos que já anda, fala o suficiente para um diálogo, tem vontades próprias. Uma criança que encanta e incomoda os adultos a sua volta diante do exercício da sua autonomia. A mamãe e o papai levam o menininho para uma festa cheia de crianças, brinquedos bacanas, comida gostosa e cheirosa, ambiente colorido, personagens infantis, amigos, gritaria, corre-corre, empurra-empurra, brinquedos altos e distantes do chão, personagens gigantes com bocas grandes e vermelhas, comidas quentes ou frias demais, adultos que se dão o direito de tocar e dar bronca no menininho sem cerimônia, pessoas estranhas.


Diante desse cenário conflitante, papai, mamãe e menininho podem seguir alguns caminhos:
1. Pai e Mãe empurram o menino para aquele universo de atração e repulsão, espaço de presença e ausência. Pais que, para a criança, “não querem” ele por perto, e, para os pais, o que eles “querem” é que o menininho aproveite o lugar bacana. Nessa situação, a criança pode sentir-se magoada com o “empurrão” e colar nos pais, Ou arriscar-se no ambiente externo sem se perceber pequena num mundo de adultos, num ambiente de adultos;


2. Pai e Mãe, ao contrário do modo anterior, julgam o lugar perigoso e temem pelo filho e, sem perceber, seguram-no, achando que estão protegendo o menino para que ele não corra risco nenhum naquele lugar cheio de perigos. O ambiente é visto como ameaçador. Já a criança, diante da atitude de proteção dos pais, pode viver um medo paralisante, ou um “tudo pode” perigoso, desafiando os pais;


3. Pai empurra o filho e, ao mesmo tempo, Mãe segura o menino, ambos partindo das suas histórias e experiências como aluna(o) e como filho(a). Nessa situação, as verdades prontas dos pais não deixam lugar para as experimentações necessárias da criança. Poder relacionar-se com outras pessoas. Poder relacionar-se com este novo ambiente. Nessa combinação, uma criança pode “escolher” confiar no pai Ou na mãe, e, seguir no seu processo de desenvolvimento isolando partes em si, parte do pai e parte da mãe, e fora de si, ambiente seguro e ambiente perigoso, acreditando em mundos fragmentados!


E aí, estão entendendo aonde queremos chegar?! São verdades distintas convivendo no mesmo lugar! Todos querendo o bem estar (?) do seu jeito, nas suas dúvidas e certezas. Cada corpo, de modo objetivo e subjetivo, vai vivendo os seus Conflitos, interna e externamente a cada um. O menininho, a mamãe e o papai e todos os presentes na festa estão habitando o mesmo espaço mas o sentem, percebem-no e agem de modos distintos. Temos, no exemplo dado, um campo de forças com várias orientações e, pasmem, todas são verdades possíveis! Podem ser vistas varias dimensões de um mesmo lugar e com cada um, simultaneamente, percebendo determinada parte do mesmo acontecimento.

E agora, que loucura é essa? Como vamos viver sem o conhecido e falido controle das coisas ao nosso redor?! Como podemos propor liberdade com limites?! Existe liberdade com limites?!

Nossas conversas, aqui lançadas, vão propor negociações entre as várias verdades que coexistem no mesmo ambiente. Ambiente é entendido como o lugar no qual encontramos as diferenças e semelhanças, no qual cada um define, até certo ponto, o certo e o errado para si mesmos. A criança decide em quem confiar, quem define este ambiente seguro.

Vamos interagir por meio de perguntas e respostas, de propostas de questionamentos. Vamos falar sobre temas como: pés para dentro ou pés para fora do carregador; bebês/crianças sentadas em W, pode?; postura em pé, correta ou errada?; Mamãe X Papai, quando dar colo ou encorajar um afastamento, etc...

Fiquem conosco e nos ajudem partilhando os questionamentos que acompanham vocês. Quem sabe duas pessoas, um médico (pediatra) e uma fisioterapeuta (terapeuta alfa corporal), que unem suas forças, podem promover uma reflexão compartilhada?! 


PARTE 2

Como falar sobre as necessidades e os interesses que acompanham os corpos presentes nas famílias sem reconhecer as partes distintas que precisam e devem coexistir/dividir o mesmo espaço? A única verdade absoluta que permeia as relações familiares e sociais é a de que uma verdade só não contempla os aspectos singulares de todos os que convivem em um mesmo ambiente. Cada um traz seu próprio olhar e a própria forma de sentir e perceber uma situação. Cada um traz sua verdade diante da mesma situação, baseada na sua própria história.

Continuamos provocando um modo de pensar novo para, então, sermos capazes de conversar sobre aspectos mais objetivos. Uma tentativa de instalar um ambiente que favoreça determinada escuta e possa gerar condição para que cada um aposte em influenciar e ser influenciado, resultando numa troca favorável a todos. Isso é diferente de afirmar OU negar a informação com a qual estamos em contato. A percepção de uma realidade em camadas, na qual o melhor não corresponde ao idealizado, mas ao que é possível, isto é, ao melhor possível, não ao melhor idealizado. Baseando-se no melhor possível, cada um participa da situação do seu jeito e age buscando o melhor que não exclui novas possibilidades. Não exclui porque negocia com as diferenças. De que modo? Estabelecendo uma composição entre várias partes, uma negociação entre as referências, entre as pessoas presentes no acontecimento, entre as possibilidades/impossibilidades de ações. Tudo isso é importante, mas, o principal é ter a capacidade em desconstruir a ilusão de uma técnica infalível para lidar com as diversas situações.

Quando tratamos do tema filhos, essa característica do certo OU errado, do melhor OU pior fica acentuada. Os temas podem virar arenas de combate gerando medo, isolamento, enfraquecimento, raiva e desinformação. Ao invés de colaborar uns com os outros, abre-se a possibilidade de acusar uns aos outros. Na tentativa de encontrar uma ação mais amorosa e protetora e, ao perceber uma ação diferente no outro em relação ao seu filho, muitas vezes a conversa vira uma briga. O que um fala é ouvido como ameaçador e não como a possibilidade de fazer diferente.

Vamos pensar nos corpos da mãe e do quase bebê em seu ambiente uterino e problematizar a afirmação de que “a culpa é da mãe”.

O corpo do bebê, antes de nascer, permanece dentro do corpo da mãe. Dentro, o corpo dele é contornado pelo corpo da mãe que, para o bebê, é uma outra camada de si, que o sustenta, vitaliza e contém. Não existe o outro, tem ele, o bebê. Não é por mal; simplesmente ele precisa crescer e viver e não sabe nada além disso. Para tal aventura, conta com o espaço, nutrientes e disponibilidade do que vai chamar, no futuro, de mãe. Nessa fase, não existem consciência, palavras e ações escolhidas. Existir é a questão que move o corpo do bebê e seu corpo orienta o organismo na direção de mais vida. Claro que existem outras camadas da existência do bebê, coisas que desconhecemos, talvez. Para a continuidade dessa vida, entretanto, o corpo da mãe é ambiente necessário. A mãe existe a partir da própria experiência de vida desse bebê. E a partir desse bebê.

Para o corpo da mãe, o bebê ocupa o espaço possível e o quase impossível. De modo objetivo e subjetivo, o bebê vai ocupando muito espaço, dentro e fora da vida da mãe, mesmo antes de nascer. Partes vitais da existência da mãe são espremidas e vivem a experiência de perigo. O diafragma, por exemplo, músculo importante da respiração, localizado entre o tórax e a cavidade abdominal. No organismo, esse músculo, vai separar e aproximar qualidades aéreas das terrestres, pensamento e digestão, por exemplo, além de ser o principal músculo da respiração. Durante a afirmação da vida do bebê, no amadurecimento do corpo dele, o corpo da mãe vive o risco de negação de vida em si, vivido na falta de espaço para respirar. A expansão do bebê interfere na possibilidade de expansão de sua mãe. Essa realidade que pode ser tanto objetiva como subjetiva, geralmente, não impede que a mãe ame e espere alegremente a chegada do seu bebê. Antes mesmo do bebê nascer, ela, frequentemente, já sonha com características e modos de se relacionar com essa parte de si, que vai ter um nome que ela vai escolher. Ela prepara e antecipa a realidade que o bebê vai viver e tem certeza de que ele vai ser muito feliz. A mãe consegue se expandir a partir desse bebê quando se percebe gerando vida dentro de si. É uma experiência subjetiva, pois seu corpo está impedido de expandir.

Fusão de corpos, essa é a realidade comum entre bebê e mamãe. O pai, onde está o pai nesse momento? (Iremos falar sobre isso em outra publicação)

Vocês enxergam as possibilidades de conflitos na experiência da mãe que coexiste com a experiência do bebê? É só bom? Só ruim? Existem conflitos legítimos? Será possível acreditar em fórmulas prontas para viver os acontecimentos que se configuram tendo os corpos da mamãe e do bebê fusionados?

No mesmo ambiente, vamos enxergando realidades distintas. De modo objetivo, para o bebê, o corpo da mãe inexiste, tudo é ele mesmo. E, para a mamãe, de modo subjetivo, o bebê já existe, com base nas suas expectativas. A expectativa de presença do filho, para a mãe, gera um ambiente de possibilidades/impossibilidades. O bebê é tão vital dentro de si quanto um órgão como coração ou fígado. Mas a sua relação com esse filho nascido confirma nela as possibilidades e impossibilidades imaginadas.

Como será que cada um, mãe e bebê, vive e sente essa realidade de verdades distintas coexistindo no mesmo espaço e tempo? Onde fica o papai diante dessa fusão? O reconhecimento dessa fusão pode gerar reflexões importantes. O reconhecimento da fusão, objetiva e subjetiva, pode orientar os corpos para aquilo que vitaliza esses corpos.

Quando entendemos que as relações são baseadas em verdades distintas, somos capazes de pensar de modo a caber mais gente. A falta de percepção daquilo que acontece simultaneamente, como no exemplo dos corpos do bebê e da mãe, interrompe o diálogo entre as pessoas no aspecto mais rico da interação: as diferenças de percepção, de consciência, de ação e de conhecimento de cada ser humano coexistindo no mesmo espaço e tempo. A possibilidade de estarmos bem diante do conflito.

Estamos conversando sobre nos aproximarmos baseados na semelhança, mas somos capazes de seguir nos desenvolvendo apostando também na diferença. A partir das diferentes formas de perceber o ambiente e de reagir a ele, podemos construir em nós mesmos novas possibilidades de ação.

Compartilhe suas reflexões. Vamos co-operar o texto e os saberes, dando mais sentido para a nossa participação. Qual o recorte que você faz desta nossa reflexão compartilhada?

PARTE 3

DENISE:
Confesso que me senti “perdida” quanto ao tema “Onde está o Pai”. Aceitei e me deixei ficar neste ambiente estranho, acho que me senti um pouco como um pai. Diante de tantas discussões sobre o lugar da mãe, me vejo na dúvida sobre o lugar do pai. O quanto o tema mãe, mãe/filho, mãe/pai, mãe/pai/filho, mãe/dupla jornada, mãe/com e sem apego são abordados? Nas conversas informais e nos estudos científicos, sempre é a mãe que segue centralizando as duplas, os trios, as dificuldades e as certezas. A mãe é o corpo que orienta o caminho a ser feito. Isso é tão objetivo, tão concreto. Onde fica nossa subjetividade?

Diante dessa experiência, resolvemos escrever a duas vozes. Pensamos que é urgente desfazer a fusão, diferenciar o pai da mãe para, só então, podermos aproximar esses dois importantes lugares que duas pessoas devem ocupar quando resolvem ter um filho(a). Cacá, quais são as suas impressões diante da necessidade em diferenciar o pai da mãe? 

CACÁ: 
Sim, chego na conversa trazendo muitos questionamentos. 
A 1ª reflexão é sobre quando nasce a possibilidade da paternidade? Para mim, nasce a partir da experiência como filho. Possivelmente da própria experiência como um filho nascido e não da gestação do seu filho. Se vem da própria experiência do corpo em fusão, já está presente desde o começo?

O 2º questionamento é o de que a paternidade não é uma experiência tão corporal quanto a maternidade: será? Alguns homens vivem esta corporalidade de forma intensa durante a gestação. Poderia supor uma fusão mais subjetiva, embora as variações hormonais do pai durante a gestação comprovem uma participação corporal intensa.

Uma 3ª questão é: onde fica essa fusão? Poderia supor que a experiência como filho na fusão com a própria mãe pode ser revivida pelo pai nesse processo de gerar um filho. Nesse sentido, dependendo do grau de amadurecimento e fusão do filho atual com a mãe atual, o pai que vem surgindo pode encarnar o próprio corpo de pai, de fato. O Pai poderia, objetiva e subjetivamente, dar contorno ao corpo fundido da mãe/filho. A paternidade estaria em criar um ambiente propício a essa gestação/fusão.

DENISE:
Acompanhando você, penso na fusão do corpo desse filho com o corpo dessa mãe. O pai ou mãe de hoje, que um dia experimentou a fusão com o corpo da própria mãe, precisa se diferenciar desse corpo. Diante do processo de vida no qual “nasce fundido”, separa-se como menino e jovem; o filho só pode virar pai, de fato, na diferenciação do adulto. Sem a condição de adulto, o pai não pode habitar, de modo integrado, o seu lugar. Lindo isso, né?! A necessária e importante fusão do começo da vida, falamos sobre isso no texto “II - A Culpa é da Mãe! Onde está o Pai!”. 

Precisa desfazer, de fato, a fusão, o necessário e importante descolamento de corpos em suas ações, comportamentos, emoções e saberes. É importante a aceitação e a possibilidade de viver as diferenças que vão surgindo, cada vez mais, durante o crescimento dos filhos. Diferenças que garantem que um corpo siga vivendo sem o outro corpo. É preciso ter a certeza de que em vários momentos, o pai e a mãe não poderão estar com seu filho, por exemplo, estudar na mesma escola, dançar na balada com os amigos, fazer o exame do vestibular, etc...

Esse é o momento no qual reconheço duas importantes ações do pai, acompanhar e auxiliar a mãe nessa jornada de fusão E de descolamento. Ora a fusão, ora o descolamento, ambos são momentos que podem ser bem difíceis para a mãe que vem surgindo. São situações que se alternam ao longo de toda a formação do filho, gerando conflito.

CACÁ: 
A participação do pai nos cuidados dos filhos revela a possibilidade do cuidado do outro e, ao mesmo tempo, ameaça a fusão materna. O vínculo paterno expõe possibilidades de outros vínculos e fragiliza a certeza da fusão, da onipotência que ela traz em si. Nesse conflito, o pai pode ser aquele que (não) auxilia a mãe. O pai existe como outra possibilidade e experiência de cuidado. Como um amparo e um perigo. E quando ausente ou enfraquecido na sua relação com esses corpos fundidos, aparece como a incorporação da ausência que virá do processo de desfazer a fusão. Ele vai existir em presença ou ausência. Lugar difícil este do pai. 

Pensando a paternidade como ambiente, ela traz a informação de ambiente seguro, protegido ou poderá trazer a experiência de ausência e das questões ligadas a esta ausência.

DENISE:
Difícil tarefa para as duas pessoas que decidiram viver a realidade de serem pai e mãe. Como a mãe, a deusa do acontecimento vai dar ouvidos para um simples mortal? E o pai, o guardião dos territórios, como vai fazer isso, cruzar essa barreira sem atacar, julgar e criticar?

O corpo da mãe determina e orienta uma importante função, ela vai gerar uma vida. Nesse sentido, parece que o pai, diante de um conflito, pode ir embora, e a mãe é obrigada a ficar com a sua cria, ou submeter-se aos comandos do pai para que ele fique. No início da vida do bebê, a fusão dos corpos orienta e determina as ações da mãe. Depois essa realidade se fixa com a crença das próprias mães que se instalam em um lugar de que só elas sabem cuidar do filho Ou ele, o pai, não quer participar. Os estados de raiva, inveja, medo, humilhação, vitimização podem proliferar nesse ambiente no qual a mãe é a melhor e o pai é o pior, onde a mãe está presa e o pai está livre. 

CACÁ:
A mãe se inicia como um ambiente interno e o pai como um ambiente externo. Há, na natureza humana, algo de dentro para fora que está intimamente ligado às nossas capacidades e interesses e, ao mesmo tempo, existe um chamado de fora para dentro despertando em nós outras possibilidades que inicialmente não conhecemos. Já iniciamos a jornada da vida numa constante relação de dentro para fora e de fora para dentro. Inspiração e expiração. Pai e mãe e as heranças trazidas neles. Quando a relação pai/mãe, ambiente interno/externo estão fragmentadas, interferem no desenvolvimento do filho. Durante a vida, esse filho busca integrar a experiência materna com a paterna e apaziguar o conflito que vive, podendo assim estar em contato consigo mesmo e seu ambiente externo independente das expectativas trazidas nessa herança.

DENISE:
Diferenciado!


Denise De Castro: fisioterapeuta e terapeuta Alfa Corporal, escritora e pesquisadora independente. O livro “O Método Corpo Intenção. Uma terapia corporal da prática à teoria”, editora summus, tem lançamento previsto para outubro deste ano. Cadastre-se no site para informações / Leia as Crônicas de Bebês


Dr Carlos Eduardo Corrêa (Cacá): médico e pediatra aqui do Blog do Cacá. 

terça-feira, 6 de setembro de 2016

A Receita da Família Feliz

A receita da mater-paternidade romantizada:

- pegue um casal apaixonado
- misture com um desejo de ter um filho
- salpique com a expectativa de que essa será a melhor experiência da vida
- jogue numa noite perfeita de amor
- cozinhe adicionando a crença de que esse filho representa o melhor do que há em cada um dos pais
- sirva regado de ilusão de que tudo será perfeito

Já sabemos que esse bolo não cresce!

Romantizar o processo de ser pai e mãe de alguém, como se fosse apenas seguir uma receita de felicidade já descrita nos livros, pode render boas fotos no instagram, mas na prática coloca as pessoas em um estado de frustração e vazio. 

Ter filhos é adicionar ainda mais um ingrediente - completamente instável e quem sabe até desconhecido - à uma comida agridoce para a qual nunca houve, nem nunca haverá, receita: relacionamentos. 

Imagem daqui


A ideia de que somos metades de laranjas procriando para gerar gomos ainda mais saborosos de nós mesmos sustenta uma boa parte dos embates familiares: tentando espremer no outro algo que é melhor para mim, ignoramos a oportunidade de experimentar o néctar do melhor em nós mesmos.E o melhor que ha no outro, que eu desconheço. A necessidade do controle as vezes nos leva a não conviver com o mistério. O inesperado que nem sempre é o idealizado por mim. As vezes melhor, muito melhor!

E a grande receita é a des-receita: os melhores ingredientes para a minha vida familiar são aqueles que eu tenho, do jeito que são, ou aqueles que eu idealizo - mas que de fato não estão na minha prateleira? Quando imagino o seu melhor , este melhor é para você ou para mim ?

A expectativa sobre o outro, sobre aquilo que queríamos que ele fosse, para dar cabo dessa receita que não existe, apaga toda a possibilidade de encontrarmos a melhor versão de nós mesmos. A sua incapacidade de ser o meu melhor, confirma a minha incapacidade ?

Que gosto teria esse bolo se estivéssemos todos doando nossos sabores originais? E mais: se tivéssemos a consciência que, humanos que somos, mudamos o tempo todo sobre aquilo que podemos contribuir? Que tal poder enxergar com mais clareza minhas próprias expectativas ?
O ótimo é inimigo do bom ou o bom é inimigo do ótimo ?

Ora fubá, ora água, ora sal - nenhum de nós estará isento a comer um pouco de caroço no angu. 
E é gostoso assim, podem apostar.