terça-feira, 30 de agosto de 2016

Julgue Menos, Pense Mais, Dialogue Bastante


Uma mãe mexe no celular sentada na cadeira de um aeroporto enquanto seu bebê dorme em cima de um pano estendido no chão.

O chão do aeroporto pode ser mesmo um lugar muito sujo e inóspito para um bebê recém nascido. É realmente uma tragédia contemporânea o tempo que os adultos passam olhando para telas, e a distância emocional que isso anda ocasionando para as relações. Não há dúvida que os adultos precisam ser constantemente convidados a olharem seus bebês como pessoas completas, cheias de desejos e direitos que muitas vezes são ignorados e subtraídos. E nem vamos discutir o quanto um colo de mãe é saudável e desejável para bebês pequenos. Todas essas premissas são reais e corretas.

O que não é muito correto é, baseado nas premissas, traçar um julgamento moral de uma mulher, uma pessoa, apenas através da interpretação de uma imagem. O que a fotografia não conseguiu capturar é que aquela mãe estava há 48h no aeroporto, tentando voltar para casa sozinha com a filha, depois de passar por uma série de cancelamentos de vôos e tentar inutilmente auxílio na companhia aérea. A foto também não dava conta de dizer que ela também havia dormido no chão, e havia se levantado minutos antes, pegando o celular exatamente para tentar resolver o problema. A fotografia não conseguia registrar, enfim, nada que não fosse uma imagem passível de interpretação parcial de um evento cotidiano de um aeroporto.



Um grande grupo de pais conversa em um grupo de apoio para paternidade em torno de uma única criança que brinca na cena.

É fato que homens que tem filhos tem mais oportunidades de desenvolver seu projetos pessoais, do que mulheres que tem filhos, e isso se deve ao fato de que mulheres são mais responsabilizadas pelos cuidados com a criança. No geral, as mães são as cuidadoras principais, e nossa cultura insiste em colocar o pai como um ajudante com menor responsabilidade. De modo que, sim, é fato, se compararmos uma roda de mães a uma roda de pais, veremos um número maior de crianças na primeira, e, ainda, se compararmos as atividades pessoais que mães e pais de filhos pequenos desempenham, veremos que o segundo grupo sempre tem mais oportunidades de saírem sem os filhos do que o primeiro grupo. Todas essas premissas são fatos reais, e corretos.

O que não é muito correto é desqualificar a paternidade de alguns homens, baseado apenas no fato de que eles não estavam com os filhos no momento do registro que virou público. Pois o que a fotografia não conseguiu capturar é que havia mais quatro crianças na sala. Não conseguiu contar também a jornada agreste da esmagadora maioria dos homens que ali estavam, lutando contra sentimentos de abandono e violências variadas que sofreram na infância, por seus próprios pais, para através do diálogo tentarem fazer melhor, para os filhos. A foto também não contava do número de órfãos de pais naquela sala e nem tampouco tinha o poder de registrar o esforço individual que cada um daqueles homens fazia para sair da zona de conforto do futebol e da cerveja com os amigos, da zona da brutalidade e aspereza que é reservada aos homens, para abrir espaço emocional e lidar com questões em um grupo de iguais.



Não vou insistir que não julguemos. Fazer um julgamento é algo essencial para tecer uma consciência crítica sobre as coisas, algo que por sua vez é fundamental para reorganizar nossa existência, melhorar e fazer o bem. Poder viver um lugar aonde possam coexistir um juiz ,um promotor e um advogado,em linguagem figurada ,que dialoguem sobre a questão sem que um atropele os demais. Podendo perceber com mais clareza a questão observada, a partir dos 3 olhares.

Há também muito perigo em insistir que "não julguemos" uma vez que existe pouca disponibilidade para o debate democrático. O pedido de que não se julgue, pode ser ao mesmo tempo um silenciamento à crítica, e convenhamos, há muito o que se criticar quando falamos da vida adulta contemporânea. 

Mas vamos usar nosso julgamento para o discernimento e não para inferir, por puro desejo de controle do outro, sanções àqueles que julgamos. Não é assim que se faz justiça e nem é assim que se emite opinião. Sejamos gentis e inteligentes. Há uma diferença enorme entre opinar e desqualificar. Entre julgar e punir. Entre provocar reflexão ou procurar culpados. É necessário pensar, criticar, atuar intelectualmente e acima de tudo, dialogar democraticamente.Para viver isto ha necessidade de empenho diário. De exercitar internamente esta atitude, o que sabemos não ser fácil.

A vivência da democracia é essa: o exercício da convivência respeitosa, sem sanções injustas, com aquilo que julgamos ser errado no outro. Vamos fazer um esforço para tratar os outros do jeito que gostaríamos de ser tratados, mesmo que seja nos comentários das fotos nas redes sociais.

quarta-feira, 24 de agosto de 2016

Alimentação, Higiene e Sono: quem está cuidando do bebê?

A pediatra húngara Emmi Pikler é mundialmente reconhecida por seu trabalho emancipante e respeitoso com crianças. Um dos pilares de toda a sua práxis - que data do fim da segunda guerra e se estende até os dias de hoje no Instituto Lóczy, coordenado por sua filha e sucessora Anna Tardos - além da livre motricidade, é o poder do vínculo respeitoso entre criança e cuidador.

Para Pikler, o crescimento emancipado da criança acontece apenas dentro de uma área de segurança que ela tem sobre o mundo que a cerca e sobre si mesma. Essa segurança existe à partir das condições ambientais e emocionais.

Não há crescimento sem afeto. E dela não vamos discordar. 

A abordagem Pikler é muito categórica sobre o conceito de segurança afetiva: aos adultos cabe respeitar a criança como uma pessoa completa, com expectativas próprias, com peculiaridades intransferíveis. 

E o desenvolvimento dessa relação de respeito se dá através de nada mais nada menos do que cuidado. Para Pikler, é nos rituais cotidianos de cuidado com o bebê que mora a oportunidade de desenvolvimento de segurança através do afeto e portanto oportunidade de crescimento sadio. 

E vejam que interessante: todo o trabalho base de Emmi Pikler aconteceu com crianças órfãs da guerra. A necessidade de fazer um grupo de crianças muito pequenas superar desafios de forma empoderada era maior do que ficar discutindo se o pai troca as fraldas, se a mãe cozinha com orgânicos e amor e de quem era a função de lavar a roupa.

Não havia pai, não havia mãe. Mas havia quem cuidasse, e através do cuidado muito respeitoso, quase metódico, havia afeto. Fica nítido nesse trabalho que não existe outra forma potente de crescer que não seja através do balanço delicado entre liberdade e segurança. E o meio? Cuidado afetuoso.

Porque estamos contando tudo isso? Pensamos que a abordagem Pikler pode servir de fomento para as reflexões que temos feito atualmente sobre os novos paradigmas familiares. 

Muito temos debatido sobre "papéis" de pais e mães, dentro das novas organizações familiares. Enquanto revemos o jeito que parimos, alimentamos, comemos, compramos, queremos também que as relações familiares sejam equânimes, com possibilidades de vivências verdadeiras para todos. O paradigma da mãe que cuida e do pai que provê já não sustenta tantos núcleos familiares e não contempla necessidades individuais de muita gente.

Um bebê precisa ser trocado de 6 a 8 vezes ao dia. Precisará de embalo para o sono por volta de 6 vezes ao dia nos primeiros meses e diariamente pelo menos até que consiga dormir sozinho, o que pode acontecer apenas no fim da primeira infância. Precisa ser banhado e ter roupas limpas diariamente, por muitos anos. Precisa ser alimentado até 6 vezes ao dia, ou até 12+ vezes, se estiver mamando em livre demanda. À exceção do leite da mãe, todos os cuidados básicos com a vida humana nos primeiros anos podem ser desenvolvidos por qualquer pessoa que lhe tenha afeto. 

No entanto, são tantos paradigmas como esse a serem quebrados, que muitas vezes deixamos de lado o olhar cauteloso para a importância do cuidado básico. Com nossos filhos, conosco, com nossas casas. Nossa geração parece ter estabelecido uma relação milagrosa com as coisas: roupas que se lavam sozinhas, bebês que dormem num passe de mágica, comida que aparece no prato. 

Cuidar de um filho é também estar presente, brincar, contar história, passear. Os filhos são nossa responsabilidade inclusive na hora de pagar a escola, mas não é a isso que se resume a mater-paternidade.

Quantas de nossas questões sobre dificuldades em nossas relações, inclusive com os filhos, estão vindo da falta de um olhar atento, tempo e disponibilidade para o cuidado básico, com eles e com a vida?

Voltando a Pikler, uma preciosa contribuição: o investimento afetivo nos momentos de cuidado alimenta a criança de segurança para se desenvolver melhor e mais independentemente em outros momentos. E isso se resume a alimentação, higiene e sono.

Fica aqui a reflexão: como está a nossa disposição para o cuidado básico afetuoso para com nossos filhos? E para apimentar um pouquinho: como é a disposição para o cuidado básico geral da nossa existência - desde a casa que sujamos até a comida que comemos? Estamos olhando para esses momentos como algo integrado à vida, e portanto importantes, ou estamos fugindo dos cuidados para exercer apenas uma parte do pacote de ser adulto?





 Neste sábado no Espaço Nascente temos a Roda de Pais, com o tema Tirania X Autoridade 
A roda de Pais é uma proposta de tempo e lugar para debater questões da paternidade contemporânea, mediada pelo Cacá e a dupla do BebêGrafia, Victor Farat e Rodrigo Bueno.


segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Entrevista com Cacá para o Diário da Região - Pediatria Humanizada na Revista Bem Estar




Hoje, o senhor é uma referência quando se fala em atendimento pediátrico humanizado. Na sua opinião, qual é o seu diferencial?

Quando se fala em atendimento humanizado está se falando de um modelo de atendimento baseado na escuta e na informação válida para aquela família. Envolve tempo e disposição para ouvir antes de falar. É natural para muitos médicos dispor de pouco tempo para uma consulta que trata tecnicamente uma questão de doença e não de saúde. O ensino médico, os planos de saúde e por vezes os próprios pacientes contribuem para esta visão. Romper com esse modelo não é fácil e se colocar a disposição para ouvir traduz o espírito do que é o atendimento humanizado.

O ganho que se tem em poder estabelecer um momento de troca é o maior presente.

O senhor trabalha com a construção da consciência da importância de se estabelecer uma relação de prazeres da mãe com seu bebê. O que seria isto na prática?

Se tornar mãe é imenso, é transformador, é mágico. Pode ser uma experiência de imenso prazer quando nos deixamos conduzir por este caminho. Poder se rever como ser humano, como cidadã e como mulher para reencontrar o significado da própria existência. O caminho interno é natural. Poder olhar seu bebê igualmente possível como um ser humano melhor, um cidadão melhor. Poder contribuir para a construção de um mundo melhor.

Não quero falar aqui de perfeição nem de certos e errados, mas sim de amor. Se estamos livres para viver este amor materno na sua plenitude esta relação de prazeres mútuos se estabelece naturalmente. Muitas vezes não é fácil chegar neste lugar, mas entendo que é possível e que o principal papel do pediatra é auxiliar nessa construção de uma relação de prazer. Por isso entendo que depende de muita escuta, pois as mulheres podem estar pressionadas a fazer a coisa certa que nem sempre é o mais amoroso para aquela família naquele momento. Poder optar pelo caminho amoroso é a melhor saída. E conseguir perceber esta possibilidade e seguir em frente garante mais prazer na construção de uma maternidade mais ativa e prazerosa.

Quantos anos de carreira o senhor tem? Tem uma média de quantas crianças já atendeu?


Tenho 27 anos de profissão e muito tempo como neonatologista e intensivista neonatal. Como pediatra de consultório 10 anos. Acredito ter atendido entre sala de parto, UTI Neonatal e consultório cerca de 10000 crianças. 

Desta crianças, tem algum atendimento que o senhor nunca esqueceu? Por que?

Lembro-me de vários atendimentos por varias situações. Em especial de um num PS público quando entrou no consultório o pai e a criança de 5 anos. Um senhor bastante simples e um menino com um olhar curioso. O pai parecia um pouco nervoso, talvez por estar no médico. Já era uma situação especial por ser raro o pai levar seu filho em consulta. E conforme conversávamos o olhar para seu pai daquele menino. A importância de estar havendo respeito mútuo entre eu, pediatra e aquele senhor. O menino observando esta interação entre o medico e seu pai e guardando internamente esse momento em que seu pai se sentia acolhido na consulta. Não sei se consegui transmitir quão importante, quão significativo foi para mim me dedicar a estar presente ali. E a beleza do olhar do menino.

O senhor coordena o Espaço Nascente. Como surgiu a ideia de criar este espaço?

Espaço Nascente surgiu num momento que senti que as famílias precisavam de um lugar acolhedor para esse novo modelo familiar onde a gestação, o parto, a amamentação e a criação com apego estão sendo revistos como novas possibilidades de construção familiar. Poder dividir essa experiência com profissionais que acreditam nessas possibilidades como um parto natural, e com famílias que estão nessa mesma busca. Sair do isolamento que esta opção pode gerar, já que não é comum.

Seu espaço conta com a musicalização para bebês, por exemplo. Me fale sobre os benefícios?

A criança é essencialmente sensorial e freqüentemente sem ritmo estabelecido. Construir uma relação de prazer com a musica, com os ritmos, explorar a possibilidade de gerar sons de diversas naturezas é uma delicia, principalmente na infância. Os bebês são grandes exploradores e buscadores de novas possibilidades e quando encontram prazer nesse caminho é muito mágico o que acontece.

O senhor também é um grande incentivador da amamentação. Por que? Na sua opinião, até quando um bebê precisa ser amamentado?

Amamentação quando está bem, quando houve o encontro corporal da mãe com seu filho é uma experiência de muito prazer mútuo. Como estamos falando desta possibilidade de uma experiência de prazer e não de uma mulher com obrigações como mãe, através da amamentação se inicia esse caminho. Não é fácil e tem muita chance de não dar certo pois tem muitos contras no caminho desta mulher. Seu leite é fraco! Você tem pouco leite! De novo no peito? Você vai ficar escrava deste bebe ! e tantas outras coisas que esta mulher vai ter que lidar para conseguir amamentar. Poder ajudar a achar um jeito que seja bom para ela e para seu filho é o principal trabalho do pediatra. A mulher e o bebe devem mamar enquanto estiverem vivendo este momento de prazer mutuo que pode durar 2 anos ou mais. Não tem que durar este tempo, mas pode ir ate lá.

Por ser um neonatologista, o senhor também incentiva o parto humanizado. Como preparar as mães num país conhecido pelo alto número de cesáreas?

A experiência de viver um parto ativo é maravilhosa e transformadora. Se descobrir capaz de gestar, parir e nutrir podem ser a experiência mais mágica da vida desta mulher. Eu recomendo sim! Saber escolher uma equipe favorável ao parto natural e que prepare no pré natal esta família para viver esta experiência é fundamental para dar certo. Na sala de espera deste profissional deve haver mulheres que tiveram este parto e podem falar dele. Durante a consulta este assunto deve ser tratado em todas as consultas O profissional de parto que faz parto normal e natural costuma desmarcar consultas já que parto é imprevisível

A mãe tem uma ligação intima com o bebê desde a gestação. Neste cenário, qual é o papel do pai?

O papel do pai é ser pai e não ajudante de mãe. É também se transportar para este novo lugar e se transformar como ser humano e cidadão. Poder estar presente nos vários momentos desde o parto ate a idade mais adulta de seu filho, acolhendo esta criança nas suas constantes experimentações da vida. Na alegria e na tristeza. Na saúde e na doença.

Não tem um jeito certo, um modelo ou uma técnica. O que tem é que se arriscar e estar presente dando banho, trocando fralda, atendendo seu filho de madrugada. Assim se constrói a paternidade de forma mais ativa.

A escolha do pediatra para alguns pais não é uma tarefa fácil. Qual dica o senhor dá para os pais de Rio Preto nesta hora.

Me formei em Ribeirão Preto e conheci muitos pediatras que me ajudaram a decidir qual caminho seguir. Sei que Rio Preto tem uma boa escola de maedicina e que conta com excelentes profissionais. Encontrar um profissional que troque informações que lhe façam sentido e que tenha escuta é o melhor caminho.

O senhor indica consultas pediátricas em grupos familiares. Como funciona? Quais são os benefícios?

A consulta em grupo é rica em trocas e possibilita discutir vários assuntos, inclusive questões que nem tinham sido pensadas por alguns dos presentes. É uma situação de muita troca e possibilidade de empatia por perceber que as questões em varias famílias podem ser parecidas. Geralmente são 6 familias que trazem perguntas e vamos conversando sobre elas, por mais ou menos 2 hs. Depois examino cada criança.


quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Paternidade ativa: o melhor presente de dia dos pais

Num momento que se discute as relações entre o masculino e o feminino como relação de poder. Mulheres e homens vivendo um conflito. Gente vivendo um conflito entre o masculino e o feminino.

Num momento em que vivemos uma olimpíada em que dois casos de tentativa de estupro vem à tona, numa cidade recém marcada por uma história de extrema violência contra a mulher. Somos todos vítimas. Vítimas da nossa sexualidade. 

Uma sexualidade que define o que temos que ser e o que fazer.
Neste momento vamos reviver o emblemático festejo de um dos papéis do masculino sagrado pouco reverenciado e pouco sacralizado. 

O Dia dos Pais !

O mercado de consumo se organiza pelas efemérides. As datas comemorativas representam muitas vantagens para o mercado de consumo, pois geram argumentos de venda à partir das relações humanas de afeto, ou manifestações expressivas da cultura.

A oportunidade de viver troca de afetos reais e não de presentes fica esquecida em meio a um grande estímulo ao consumo. É mais significativo demonstrar carinho dando um presente que dando um abraço. Um evento cultural como o carnaval que pertence a todos passa a ser controlado por alguns que visam lucrar com ele. Uma comemoração de algo a celebrar se transforma num clichê de shopping center.

Print da pesquisa de imagem do google

Reparem: saltamos de um dia especial para outro. Começa com "à volta às aulas" e depois o carnaval. Logo vem a páscoa, dia da mulher, dia das mães, dia dos namorados, festa junina e entram as férias (excelentes oportunidades para campanhas de viagem de avião). 

Dia das avós, dia dos amigos e  as caixas de e-mail nesse momento já estão lotadas de sugestão de que? Presentes para o dia dos pais. 

É surpreendente o quanto as relações humanas estão traduzidas por relações de consumo, e datas que seriam marcos de nossa resistência, registros de nossa história ou homenagens reais ao que amamos estejam esvaziadas de significado e substituídas por: Compre mais! Dê presentes! Demonstre seu amor dando um presente!

Chega a ser uma grande ironia - em um momento onde a paternidade necessite de espaço grande de discussão perante a sociedade - que presente seja sinônimo daquilo que mais nos faz falta:
presença. 

Ser presente e estar presente deveriam ser os temas a se discutir nesta celebração. Quanta falta faz a uma família a participação mais ativa de um pai! 

Mães, em seu dia, já articulam muito bem o que precisam, para além das quinquilharias mundanas das propagandas de televisão. Equidade social, igualdade salarial, licença maternidade adequada, apoio à amamentação, fim da violência obstétrica, para citar apenas algumas das causas levantadas todos os anos, quando se comemora o dia especial das mulheres que têm filhos.

E os homens que tem filhos ?
Do que precisam os pais? Certamente não de mais camisas e gravatas, ou máquinas especiais de fazer café com cápsulas em formatos inovadores.
Precisam acreditar que podem cuidar! Precisam acreditar que tem o que dar e que nessa troca vão ganhar muito!

Pais precisam de mais presença.
E menos presente.

Precisam entender que o papel de provedor financeiro não satisfaz as necessidades de sua família. Nao é de um membro que se responsabilize unicamente pelas finanças a maior necessidade, embora tenha sua importância. 

É de um membro que tenha um lugar mais amoroso e participativo no dia a dia. De alguém que possa dar colo, acolher a noite um filho, principalmente quando doente, alguém que possa amparar seu filho nas suas dificuldades e medos. Um pai que tenha um colo fofo sem com isso ser menos masculino!

O masculino tem sido repensado cada vez mais na sua pseudo autoridade desmedida e se tem procurado um novo lugar para esse homem que quer poder viver sua delicadeza e fragilidade sem ter compromisso com um único arquétipo de guerreiro feroz. "O destruidor"!

Imagem daqui
Esse papel social equivocado não condiz com a necessidade de um homem insatisfeito com seu lugar.
Esse homem que cuida e que dá colo é uma necessidade do homem contemporâneo. É sua possível nova realidade !

Se tornar pai e viver uma paternidade ativa pode ser transformador e libertador numa sociedade machista. Todos ganham com isso. 

As mulheres em viverem relações construídas a partir do companheirismo. Os filhos por conhecerem seus pais, não por serem pais biológicos, mas por serem pais presentes e reais. Os homens por não viverem uma máscara de agressiva disposição a falta da capacidade de amar e por poder ter compaixão. A sociedade que começa a aprender a se relacionar de forma menos violenta.

O que podemos festejar nesse dia dos pais é ter um pai que faça parte de fato do dia a dia da sua família de forma mais leve. Menos engravatado e formatado para matar um leão por dia!

Menos comércio e mais celebração!
Menos presentes e mais presença!
Para que ninguém possa ser vítima!
Feliz todos os Dias dos Pais!

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Amamentação: a última fronteira do corpo mulher


**Por Anne Rammi** 

A minha contribuição para a #Smam2016 é uma reflexão. 
Amamentação não é índice de qualidade de maternagem. Nem tampouco está na categoria "alimentação" - muito embora tenha também essa função e ninguém vá questionar a superioridade nutricional do leite materno. 

Amamentação não é um exercício de amor, e não se trata de abnegação e generosidade, ainda que seja uma experiência única de aprendizado sobre exatamente isso: entrega. E quem amamenta sabe o tanto de amor que pode rolar ali. É realmente avassalador, mas amamentação não tem nada à ver com isso. Não mesmo. 

Acho que quando escolhemos focar nesses aspectos adjacentes, criamos uma cortina de fumaça que esconde um cenário macro, dolorido e por isso ignorado: amamentação hoje se trata do resgate do poder que as mulheres têm (ou deveriam ter) sobre seus próprios corpos. Amamentação é uma pauta tão feminista que até as feministas tem dificuldade de enxergar seu potencial revolucionário de emancipação do corpo. 

Corpo. Corpo. Corpo.





Tudo o que diz respeito ao corpo da mulher - e a quantidade de violência patriarcal que sofre desde que nasce - precisa ser enxergado como o contexto para as vivências da maternidade. Se não, estamos fadados aos avanços a passos de tartaruga, regulados por aquilo que o mercado deixa. Haja visto o tanto que se fala em "benefícios do leite materno" até nas campanhas de marketing dos produtos substitutos a ele. Se a indústria de substitutos do leite materno ainda não faliu, estamos fazendo isso errado, nós as lactivistas. 

Minha contribuição para a #Smam2016 é essa.
Olhar para o desagradável. Olhar por baixo do tapete para onde se varrem as sujeiras. Sexo, prazer, gestação, parto, e tudo o que cabe entre uma coisa e outra, tem relação indissociável com a última fronteira do corpo de mulher: amamentar. 

Amamentação é a última fronteira dos corpos mulheres. Dos corpos que a elas nunca pertenceram. Faz sentido porque é difícil? 

Do brinquinho dolorido e faixa na cabeça para adornar bebês meninas, passando por toda a repressão sexual da infância. Perseguição por modelos inatingíveis de beleza e rituais torturantes para encaixe no padrão. Não vamos esquecer que muitas, se não todas nós, sofremos abusos sexuais. E algum tipo de violência maior ou menor, dessa ordem. Nosso trabalho vale menos. Nosso corpo, vale nada, e querem até legalizar (com carteira assinada) a prostituição. 

Masturbação, orgasmos, sexo, prazer, não são nem mencionados como parte natural da vida de mulher nenhuma. E não há direito de escolha sobre gravidez, uma vez que se gestante, está sacralizado aquele corpo, ainda que tenha vindo do prazer de alguém, do corpo de alguém, do sexo de alguém. 



Estamos envenenadas desde a primeira menarca (que ai, como odiamos) por anticoncepcionais que nunca despertaram a preocupação de ninguém. É natural que nos cortem a barriga e interrompam nossas gestações para tirar um bebê de lá de dentro: que sofre ameaça, do próprio corpo que o abriga. Placenta ruim, quadril ruim, dilatação ruim. O corpo que não presta, se ousar trabalhar em parto, escapa do corte na barriga mas leva no períneo, e uns sopapos talvez. E depois costuram tudo, para não estragar o parquinho de alguém.

Amamentação não é sobre amor, nem sobre escolha. Porque é sobre lidar com essa bagagem toda aí, carregada no corpo. Porque é sobre lidar com esse corpo, que agora precisa ser habitat de outro corpo. O seio é habitat do bebê sim. Tem problema se não amamentar, tem problema SIM. Não que signifique que aquela mãe não é boa - afinal amamentação não é índice de qualidade de maternagem, já passamos dessa fase. Mas significa, se houve o desejo de amamentar e ele não se concretizou, que aqueles corpos sucumbiram em alguma instância à violência que sofreram. 

Os corpos não esquecem. 

Amamentação é isso, um acontecimento que não se separa de todas as vivências daquele corpo mulher. Persistir, amamentar, jorrar o fluido do corpo que alimenta é resistência feminina. É o choro transmutador de lágrimas do corpo, em leite. 


Imagens das obras do artista Sidney Amaral 

Em tempo: desejo de não amamentar, escolha informada verdadeira por não amamentar, assim como por não gerar, não gestar ou não parir é igualmente, um exercício de poder que a mulher faz sobre seu corpo e somos todos à favor disso. Mas não vamos achar que mulheres que - frente à toda violência que carregaram em seus corpos desde que nasceram, às investidas das indústrias, incapacidade dos profissionais, ausência de estrutura social e ameaças à saúde do filho - não amamentaram seus filhos o fizeram por escolha. 

Isso não é escolha tá bom? Tá bom.