segunda-feira, 24 de abril de 2017

Pequeno Guia Prático sobre a Bronquiolite e o VSR - Vírus Sincicial Respiratório

Quando o outono chega, as doenças respiratórias passam a ser um tema de atenção para quem tem filhos, especialmente os bebês. Hoje vamos desvendar alguns pontos sobre a bronquiolite, que costuma ser muito frequente nessa época do ano.

O vírus sincicial respiratório (VSR) é um dos agentes dessa infecção aguda nas vias respiratórias superiores, que chamamos geralmente de gripe ou de um quadro viral. Pode afetar os brônquios e os pulmões, que são as vias aéreas inferiores, o que torna o quadro clínico mais grave, principalmente em crianças pequenas. 



Na maior parte dos casos, o VSR é responsável pelo aparecimento de bronquiolite aguda (inflamação dos bronquíolos, que são as ramificações cada vez mais finas dos brônquios que penetram nos pulmões, ate os alvéolos pulmonares, responsáveis pelas trocas gasosas). A bronquiolite acomete especialmente em bebês prematuros, no primeiro ano de vida, e crianças pequenas. Pode acometer outras faixas etárias mas é especialmente mais perigoso conforme mais nova é a criança, ou no caso de ter alguma doença crônica associada, como asma, cardiopatia congênita.

Esse vírus é bastante contagioso e pode-se ter esta infecção mais de uma vez, geralmente de formas mais leves na reincidência. Como outros vírus de "gripe", a maioria das crianças vai ter contato com o vírus ate 3 ou 4 anos de idade. Re-infecções ocorrem durante toda a vida, entretanto o acometimento de vias aéreas inferiores predomina na primeira infecção, principalmente em crianças menores de 2 anos.


O contato entre as crianças é naturalmente uma forma de transmissão do vírus

Transmissão

O VSR penetra no organismo saudável através da boca, do nariz ou dos olhos, e neles pode permanecer por semanas. O período de transmissão começa 4/5 dias antes de aparecerem os sintomas e só termina quando a infecção está completamente controlada.

O contágio se dá pelo contato direto com as secreções eliminadas pela pessoa infectada quando tosse, espirra ou fala e, de forma indireta, pelo contato com superfícies e objetos contaminados (brinquedos, por exemplo), nos quais o vírus pode sobreviver por várias horas.





Sintomas

A maioria das crianças com infecções respiratórias têm apenas sintomas leves, geralmente semelhantes aos sintomas de um resfriado comum. Em geral, é em crianças menores de 2 anos que a infecção pode evoluir para sintomas mais comumente encontrados em bronquiolite. 

Inicialmente, a criança terá um corrimento nasal, tosse leve e, em alguns casos, uma febre. Dentro de 1 a 2 dias, a tosse piora e ao mesmo tempo, a respiração da criança irá tornar-se mais rápida e difícil. Geralmente as gripes e resfriados geram um ruído de tom grave chamado de ronco de transmissão. Na bronquiolite aparece um som mais agudo, chamado de chiado. Fica difícil de mamar e dormir, mesmo sem febre, porque ele está tendo uma dificuldade para respirar.

A bronquiolite compromete a troca de gases e por consequência o aporte de oxigênio da criança, por causa da inflamação do sistema respiratório. Sempre existe a possibilidade de agravamento do quadro necessitando de internação, ou de Terapia Intensiva nos casos mais graves. Mas a maioria não irá necessitar desta forma de cuidados. 

Temos visto os pronto-socorros infantis lotados nessa época do ano e os casos de doenças respiratórias aumentando exponencialmente. Proporcionalmente, também aumentam os números de casos mais graves, e as internações em UTIs. 

As UTIS infantis estão lotadas com bebês que tem necessidade de receber oxigênio, medicação por via intra-venosa, fisioterapia respiratória e cuidados mais invasivos pelo quadro clínico mais grave. Não há necessariamente relação com pneumonia bacteriana nestes casos. Fica claro que nem toda criança acometida por bronquiolite deverá permanecer internada em hospital. Muito menos necessitará de UTI para melhora do quadro.

Quando devo procurar o PS?

Nem todo quadro viral precisa de atenção médica urgente. Podemos observar alguns sinais que diferem a bronquiolite das gripes comuns, antes de tomar a decisão de procurar um pronto socorro:
  • Chiado: as crianças com bronquiolite costumam apresentar um chiado cada vez que expiram o ar.  O chiado é um tom agudo, como um apito, diferente do ronco de transmissão.
  • Batimento de asas nasais: as narinas da criança abrem a cada respiração. Isso é um recurso fisiológico do do organismo para aumentar a entrada de ar, mas é indício de dificuldade respiratória.
  • Afundamento de Fúrcula: No final do pescoço/começo do tórax, aparece um afundamento cada vez que a criança inspira. Outro indício de que o corpo está se esforçando para puxar mais ar.
  • Costelas aparentes: Os ossinhos da costela aparecem quando a criança respira, outro sinal relacionado ao esforço para respirar.
  • Frequência respiratória: um parâmetro objetivo de mal estar é contar a frequência respiratória da criança sem febre e de preferência em repouso. 

Como contar a frequência respiratória: observe o abdome da criança deitada e identifique o ciclo completo da respiração (inspiração e expiração). Esse é um movimento. Marque um minuto no relógio, e conte quantas vezes a criança realiza o movimento respiratório. Pode também fixar a inspiração OU a expiração para contar. Caso a barriguinha esteja subindo pode contar quantas vezes a barriga sobe.

A frequência respiratória acima da indicada na tabela da OMS, pode indicar a necessidade de procurar um PS. Essa avaliação deve ser eita sem febre, pois com febre a criança pode ter aumento de frequência respiratória.




Diagnóstico Laboratorial

O diagnóstico específico do Vírus Sincicial Respiratório (VRS) e outros vírus respiratórios é realizados através da coleta de secreção respiratória. O melhor material para coleta é o lavado nasal. Entretanto podem ser utilizados swab nasal ou de orofaringe. 

A medição de oxigênio da criança ajuda a avaliar a gravidade do caso, indicando a necessidade ou não de internação e do uso de oxigênio .

O raio-x de tórax não é um exame específico para bronquiolites mas poderá indentificar uma pneumonia ou outro quadro pulmonar que não seja bronquiolite.

Tratamento

Não há tratamento específico pois se trata de um quadro viral.

Como para qualquer doença respiratória, as inalações com soro fisiológico costumam ser bem indicadas, mesmo sem medicação, por atuarem diluindo a secreção que se forma no sistema respiratório, hidratando as vias. 

Se você não tem um inalador em casa, o vapor do banho pode ser também uma forma de nebulização. Geralmente não ira sozinho resolver em caso de bronquiolites.

Outra forma de manter as vias hidratadas é a aplicação direta de soro nas narinas do bebê, além de fazer a remoção de muco acumulado nesta região.

Pode ser uma boa medida protetiva e de tratamento a limpeza do muco acumulado, usando-se sugadores e aspiradores nasais, que existem em vários modelos no mercado

Tanto o uso de soro nasal, inaladores e sucção de vias respiratóprias podem ser dificultados pela criança que tende a resistir a estes procedimentos. Mas acredito que o conforto que eles trazem depois justifica seu uso.



Se for identificado broncoespasmo, que é o estreitamento agudo das vias aéreas (normalmente identificado pelo chiado), o tratamento deve ser mais invasivo e com uso de medicações mais fortes. Pode ser o caso de fisioterapia respiratória e uso de anti-inflamatórios e broncodilatadores. Na situação de dificuldade de oxigenação ou nos casos de crianças de maior risco para complicações a internação pode ser a melhor opção.

A fisioterapia respiratória feita por profissionais capacitados auxilia na redução de internações para bronquiolites e pneumonias e eu recomendo sempre que se tratar de quadros respiratórios mais importantes.

É natural que crianças doentes tenham perda de apetite, sendo um dos primeiros sinais de melhora a volta do apetite. Portanto oferecer alimentos geralmente mais preferidos pela criança alem de ser uma fofice necessária, pode auxiliar na aceitação.

Líquidos calóricos como água de coco e sucos também podem ser oferecidos.

Vacina para o VSR (Palivizumabe)

Palivizumabe é um anticorpo monoclonal específico contra o vírus sincicial respiratório. Não é exatamente uma vacina, pois não estimula o sistema imunológico a produzir anticorpos.

Quem pode usar o palivizumabe: recém-nascidos pré-termo com menos de 29 semanas de idade gestacional devem fazer uso durante o primeiro ano de vida; aqueles nascidos entre 29 e 32 semanas de gestação, até o sexto mês de vida; e portadores de doenças cardíacas e pulmonares nos dois primeiros anos de vida.

Prevenção

Por se tratar de contágio por vírus através das secreções da pessoa contaminada em contato com as mucosas, a melhor forma de prevenção é a higiene. Muito embora saibamos que no dia a dia das crianças, especialmente daquelas que frequentam escolas e que tem contato com outras crianças, seja bastante improvável que se consiga evitar completamente o contato com o vírus, adotar uma rotina de lavar as mãos e a face com sabão comum e alguma frequência pode ser uma boa ideia. 

Além disso é recomendado que as escolas e seus gestores estejam atentos para o aparecimento do VSR em suas unidades, comunicando as famílias de possíveis casos.

É sempre bom lembrar que estar em lugares fechados com pouca circulação de ar pode ser mais perigoso que estar ao ar livre mesmo no frio.Portanto, janelas abertas e brincadeiras ao ar livre são bons amigos das crianças no outono.

As estações mais secas do ano, como o outono e inverno, costumam contribuir para o aumento dos casos, e piora dos quadros. Portanto, a umidificação do ambiente pode ser uma medida de proteção. Uma toalha molhada no quarto ou uma bacia com água costumam ser boas ideias para aumentar a umidade do ar, e manter o sistema respiratório mais hidratado.

O leite materno é um fator de proteção para a saúde das crianças em qualquer idade e para qualquer doença. Assim, sempre cabe reforçar a importância da amamentação no sentido da prevenção e minimização das doenças da infância.


quarta-feira, 19 de abril de 2017

Minha filha apanha na escola!

Pretendo começar hoje uma reflexão a partir do relato de uma mãe sobre as relações de sua filha na escola e com a escola. a difícil arte de educar filhes !

"Fulana apanhava na escola. Da primeira vez, eu pedi que falasse com a professora. Eu nunca ensinei filha minha a bater, sempre achei muito errado responder com violência. Da segunda vez que bateram na fulana, eu mesma fui falar com a professora. Ela disse que fulana é carinhosa e doce, e colocou nos pais do menino que bate a culpa por não dar limites. Fico me perguntando qual é o limite que os pais tem que dar para as crianças que batem, que não passe por alguma violência - mesmo que não seja física, a qual eu condeno. A professora escreveu um bilhete na agenda e conversou com o garoto sobre o valor das amizades e como devemos ser amigos de todos na escola, dando por cumprida sua tarefa, 'fez sua parte'. Da terceira vez que bateram na fulana eu olhei bem fundo nos olhos dela e disse: revide."



Crescer é de fato um desafio para todo mundo que se dispõe a pensar no assunto.

Não há teoria que sustente a prática cotidiana de criar, amar e educar os filhos, de modo que quem não vê nessa trilogia um dos maiores desafios da existência humana pode ter encontrado um lugar de conforto daqueles de onde nunca se alcança o crescimento.

Na prática, muitas vezes crescer está em lidar com o confronto, e não com o conforto.

Todo mundo leu nos livros e escutou nos discursos humanizantes que não devemos jamais ensinar a criança a revidar violência com violência. "Se alguém machucar você na escola, diga que não gostou e procure a professora!" - a gente repetiu ad eternum essa máxima, sempre torcendo para que o machucado fosse suportável, a professora fosse justa, a escola fosse equilibrada com um número correto de adultos (bem formados) por crianças e os pais do agressor fossem como a gente, celebrassem os nossos valores. Ou seja, repetimos a máxima do ideal, dos lugares de conforto, quando dia após dia, o crescimento nos apresenta lugares de confronto.

É a vida desafiando os livros!

É o real desafiando o ideal!

É o possível desafiando o melhor!

Tenho visto muitos relatos de um grupo de mães e pais lidando com essas questões: como se as teorias das boas relações humanas passassem por ideais romantizados de paz, onde os coletivos de crianças pudessem crescer sem nenhum conflito, verbal ou físico. Como se, na hipótese do conflito estabelecido, chamar a professora fosse a solução definitiva (e em uma única vez) para todos problemas. Ainda como se, o adulto que media essas questões, esteja ele na escola, na festa de aniversário ou em casa, fosse sempre algum exemplo a ser seguido, e tivesse naquele momento todos os recursos necessários para lidar com os conflitos que se apresentam.

E principalmente como se tivéssemos sempre a melhor solução para o conflito, nem sequer conhecendo que desejos e pensamentos povoam o universo desta criança, ora vitima, ora vilã !



O mais difícil para mim é dar voz a essa criança. Nesse relato dessa mãe fica faltando a criança. 

Como ela viveu a agressão, como foi procurar a professora e o que lhe foi respondido, qual seu desejo de reação diante desta agressão. Ela não deveria ter sido ouvida? Ação e reação, agressor e vitima não são proposições parciais desta situação? Para toda situação de violência física há uma unica resposta possível?

"Fulana voltou para casa e disse que bateu de volta no menino. Peguei a agenda e lá estava o bilhete, dessa vez condenando a ela por atitude agressiva e a mim 'por falta de limite'. A professora pedia que eu conversasse com ela sobre não agredir o colega, e me passou um sermão escrito sobre como a violência não é a solução. Acho engraçado uma pessoa que trabalha com educação de crianças negar a violência que existe nas relações humanas, do alto do entendimento de que bilhetes na agenda e culpabilização dos pais resolveriam esse 'problema'."

Do mesmo modo que nos aproximamos de nossa humanidade nas atitudes desumanas e temos nelas a oportunidade de crescimento, superação, evolução, poderíamos enxergar nos conflitos infantis um caminho para sua própria solução? Quando deveríamos intervir ?

Será que vale teorizar sobre a não violência para uma criança que está sendo agredida? Qual é a resposta que se espera de uma criança que foi agredida? Qual o acolhimento que se espera dos adultos em torno de uma criança que agride? O que fazer com essa horda de pais que é responsabilizada por absolutamente tudo que se passa na vida dos filhos, quando têm (com sorte) duas ou três horas ao dia de convivência com eles?

Qual a responsabilidade de gerir os conflitos vividos na escola pela própria escola?



Já escutei familiares sustentando orgulhosamente a antítese da máxima humanizante - "eu ensino a mirar no nariz e socar com força". E já escutei pais e mães que, em nome da teoria, isentam-se também, como um bilhete na agenda e as frases prontas sobre amor e amizade, de construir com a criança e os demais envolvidos formas vividas, e não teorizadas, sobre viver no conflito.

Nem uma coisa nem outra me parece sadia. Ambas atitudes isentam os adultos de efetivamente mediar. De seu trabalho como pais, mães e educadores. Mas podemos mediar quando definimos agressor e vitima? 

Ensinar a revidar não precisa significar ensinar a bater de volta. Pode significar não abrir mão do seu brinquedo, sem com isso virar pancadaria, por exemplo. Ensinar a revidar não precisa ser um ato condenável. É preciso munir as crianças, e quanto mais vão saindo da primeira infância, maior parece ser essa necessidade, de recursos para que sim, se defendam. Quais os espaços de crescimento que vamos criar?

Sabemos reconhecer em nós mesmos esta dificuldade? Um texto cheio de perguntas para uma situação extremamente difícil !

"E então ela voltou para casa contando de novo que eles brigaram na escola. Na saída do dia seguinte me plantei no portão e pedi que me mostrasse quem era a criança que a estava agredindo. Uma mãe tem seus limites. Com fulana do meu lado, abaixei e olhei firme para os dois: eu sou mãe da Fulana, tudo bem? Ela e eu estamos muito tristes porque vocês andam brigando na escola. Eu estou te pedindo que não encoste mais nela. Vocês não precisam ser amigos. Vocês não tem obrigação nenhuma de brincar juntos. Vocês podem ficar a vida toda cada um brincando no seu canto, não precisa nem dar bom dia, caso vocês não gostem um do outro. Está liberado não gostar do outro. Mas vocês dois NÃO PODEM (e nessa hora eu fui bastante firme) se bater. Tratem-se com respeito, e se ela fizer algo que você não goste, pode falar comigo também. Eu não quero que você bata na minha filha. Estamos combinados?" 

Será que esta mãe conseguiu resolver este conflito definindo que ninguém precisa gostar de ninguém, mas podem viver/coexistir nesse espaço?

Acho pouco provável e, pior, imagino o tanto de outros conflitos que vão nascer a partir desta atitude. Imagino a escola a desqualificando, a família desta outra criança exigindo providências pelo absurdo da atitude desta mãe.

Quando se trata de intervenção de adultos, parece que a confusão não tem fim. Particularmente não acho justo que essa mãe se dê ao direito de ter uma conversa de adulto com criança sem que seja sua filha, ou que a outra mãe ou pai estivessem presentes.

Mas gostei de nomear aqui o imenso universo contido numa rixa de escola e seus desdobramentos. E que soluções mágicas e estereotipadas sobre solução de conflitos negam a inteligência e complexidade humana. 

A confusão começa em negar o conflito e imaginar um mundo no conforto da falta de conflito. Como se este mundo fosse vivo. A falta de conflitos denuncia um mundo morto e vazio das inúmeras possibilidades que as interações humanas trazem em si. 

Tentando desfazer certos e errados muito fáceis. Deixando de acreditar que onde há respeito pela singularidade não cabem respostas prontas. Não cabe o modelo vivo! Mas será que a tal conversa resolveu o problema?









segunda-feira, 10 de abril de 2017

Mães adotivas podem amamentar!

Amamentação com uso de translactador

É muito importante para as mulheres que pretendem adotar crianças, principalmente as recém nascidas, saber que há a possibilidade de amamentá-las.

Como em toda situação de amamentação ao seio, os benefícios são incontáveis tanto para a mãe quanto para o bebê.

No processo de adoção, os bebês que aguardam suas mães normalmente são alimentados por seus cuidadores provisórios através de mamadeiras, não tendo tido a chance de mamar ao peito. Um bebê que chega aos braços de sua mãe, podendo estabelecer o vínculo com ela, através do contato físico, calor e aconchego que a amamentação proporciona, poderá lidar melhor e superar as questões importantes, como a rejeição da mãe biológica ou adaptação à essa nova experiência afetiva. Encarar de forma natural essa prerrogativa é um bom começo para abrir oportunidades de cura e vínculo afetivo sólido entre esse bebê e sua mãe.

O contato com o seio materno norteia o bebê e a mãe na expressão de afetividade mútua, qualificando o vínculo como físico, quando ele não ocorreu pela gestação e pelo parto.

Rituais dispensáveis, no entanto nem por isso não importantes nessa relação sólida de afeto mútuo.

A amamentação em situação de adoção pode ser olhada com esse aspecto ritualístico, e acho bastante interessante que a gente possa ajudar essas duplas na construção de suas novas histórias. Já atendi mulheres que foram bastante disponíveis, e tanto o percurso como os resultados são sempre maravilhosos.

Quando se tem a previsão de quando o bebê vai chegar, podemos trabalhar com preparo da mama, usando calor, massagens e uma medicação que ajude a induzir produção, observando o poder do aspecto ritualístico também para a chegada de um filho que não virá pelas vias naturais do corpo materno, mas nem por isso precisa ser afastado dele.

Quando o bebê e a mãe já estão juntos,  pode ser utilizado um sistema de alimentação conhecido como Translactador. É um reservatório de leite com uma sonda que conectada ao mamilo, oferece a possibilidade do bebê sugar seio da mãe e receber leite a través da sonda. Como para qualquer processo de amamentação, a sucção do bebê é estímulo que pode ser suficiente para haver produção de leite.

Chamamos isto de Lactogenese.

Translactadores: modelos de sistema de alimentação com reservatório e sonda



No começo, proponho uma equipe. Acredito que esse trabalho não deva ser feito por uma pessoa só. Acredito nesse suporte de mais profissionais. Eu conto com as parceiras Andrea e Ione da Bioamamentar no espírito de equipe interdisciplinar criando uma rede de apoio para essas mulheres.

Também pode ser uma grande aliada, alguém da área de psicologia, para dar um suporte emocional. A mãe adotiva precisa de apoio para encontrar nas situações antes da chegada do bebê seus próprios rituais de preparo, coisas que em uma situação de maternidade biológica, podem ser construídas através da gestação e parto: momentos de passagem importantes entre a vida pré e pós chegada daquele bebê.

A enfermeira especialista em aleitamento materno, pode ser uma excelente profissional para o suporte técnico do sistema de alimentação complementar, o translactador, além da preparação das mamas.

A presença de uma fonoaudióloga também é de grande valia, e pode ajudar o bebê a conquistar novas posições buco-maxilo-faciais, provavelmente condicionadas ao tempo de alimentação artificial, e reverter a pega para o modelo necessário ao seio da mãe.

A pediatria ajuda nesse processo todo avaliando o crescimento e desenvolvimento desse bebê. Claro que outros profissionais que tenham esse olhar holístico para a maternidade como construção vital entre duas pessoas, e não meramente como um evento resultado de "ter filhos", podem ser também muito valiosos: como Doulas, grupos de apoio de mães puérperas e outros: tratando tanto essa mãe como esse bebê com a naturalidade e carinho que suas histórias únicas e especiais merecem. 



Quando se fala de amamentação pós adoção, não temos como proposta que a criança fique no aleitamento materno exclusivo. Estamos propondo uma estratégia de formação de vínculo de mãe-filho. Se o aleitamento acontecer, é um ganho maravilhoso, mas não é esse o objetivo.

O objetivo é que esse contato físico e emocional entre mãe e bebê aconteça. Para além da amamentação ao seio, é recomendado que esses corpos se encontrem através do uso de slings, contato pele a pele, massagens afetuosas como a shantala, banhos juntos. Tudo para favorecer o reconhecimento dessa nova história de amor.

Existem instituições, ONG’s, que são de pais que adotaram crianças que ajudam pais na situação de espera para adoção, e quando a adoção acontece, formar/deixar nascer/ criar vínculo. São pessoas que vivenciaram essa historia, que ajudam outras pessoas, através de orientações e apóio, como é o caso do Projeto Acolher.

segunda-feira, 3 de abril de 2017

Cultura e dor

"Cultura são artes elevadas à um conjunto de crenças."
Thomas Wolfe

Culturas e tradições e ciências!

É fácil falar das nossas, gostar daquelas que praticamos, defender aquilo que fizemos com nossos filhos ou o que foi feito conosco. Ou mesmo negá-las, já que em relação aos cuidados com filhos cada geração irá ser influenciada por técnicos da área de saúde que definem o que é cientificamente correto. Afinal nada mais elevado a um conjunto de crenças que a própria ciência!

Caso tivessem contado para uma mãe urbana na cidade de São Paulo na década de 80 que a placenta deve ser enterrada embaixo da roseira, provavelmente ela acharia esse costume muito esquisito. Afinal, não está na sua coleção de riquezas. Esta mulher é construída num ideal de que ela não é bicho e muito menos índia e que portanto, parir naturalmente e amamentar não fazem parte de seu repertório de vida. Sua maior riqueza viria da artificialidade.

Sim, você está vendo um sapato de salto para bebês. Foto Pee Wee Pumps.

Tudo feito pela industria é melhor !
O que ouso chamar da Cultura do Plástico.

Da mesma forma nos espantam as andinas quando colocam o bebê no aguayo e com força e segurança lançam a criança para a vida que existe no infinito atrás das costas da mãe. Uma experiência sensorial indescritível que essa mulher oferece ao seu bebê. Mas em nossa cultura de "cuidado com o pescoço" parece descabido fazer o bebê voar.

Foto Unbolivable


Lá na Nigéria o primeiro banho do bebê quem dá é a avó. É um gesto que representa que a comunidade de mulheres está apoiando a mãe nos cuidados com o recém nascido. "É preciso uma aldeia para cuidar de uma criança", eles dizem. Muita gente concorda, pouca gente pratica.

Fica difícil de frente da poesia do primeiro banho nigeriano enfrentar o fato de que muitos bebês na contemporaneidade são esfregados com brutalidade pela enfermeira do berçário, que precisa correr logo para preencher uma planilha (lembrando que preencher a planilha fica quase mais importante que o banho) e dar conta de tantos outros bebês e tantos outros relatórios.

Foto: How To Bathe a Newborn

Faz tempo que algumas coisas que acontecem com nossos bebês por aqui deixaram de ser tradição. Jamais seriam arte, apesar de ganhar ares de cultura. Não respeitam conjunto de crenças nenhum, se não a ordem de produção do modelo morto que nos rege. Em tom apocalíptico: o dinheiro (... não consegui resistir) 

Mas falando em dinheiro e nas coisas que ele compra, fora do Brasil as pessoas estranham as lembrancinhas de nascimento. "Como pode a mãe ter que presentear um visitante? Quem merece presentes é ela". Uma estranheza que faz algum sentido.

E exatamente na busca do sentido, descobri que no Paquistão e outros países Islâmicos a nomeação do bebê é um ritual que deve acontecer no seu 7º, 14º ou 21º dia pós nascimento, onde a sua cabecinha é raspada e um animal é oferecido em sacrifício em seu nome.

Foto: Beritawajo

Quando fala "sacrifício" já dá uma estranheza. "Pobre do animal, precisa matar?". Nada à ver com os bebês, mas há quem reclame das galinhas vendidas para sacrifício em rituais religiosos exatamente enquanto mastiga o filé de frango. Cultura tem dessas coisas, quando não é a nossa, dá uma estranheza. Chega a dar aversão!

As índias brasileiras pintam seus bebes de preto e vermelho. Querem vitalizar e afastar os maus espíritos , num ritual de proteção espiritual aos bebês. Nas populações urbanas do Brasil e do mundo, as mulheres vacinam seus filhos. A vacina ganha o poder mágico de proteger os bebês, já que no dia seguinte a vacina uma criança pode andar de metrô ou frequentar o shopping sem medo.

Na esfera das crenças, pode ser mesmo dolorido. Por que precisamos acreditar que não dói?
A circuncisão, dói.
Furar a orelha do bebê, dói.
A mutilação genital das meninas, dói.
Uma faixa apertada sobre a moleira, dói.
Vacinar, dói.

Essa foto é do AliExpress, onde você compra 40 laços por 8 dólares!!!


"Mas colocar o laço com aquela colinha especial não dói, é só enfeite, é carinho, é cultura, é para diferenciá-las dos meninos!Afinal todos estavam me perguntando o nome dele. Não dava para ver que era menina!"

Há dores físicas e dores na alma. Eu prefiro voltar à Thomas na busca do sentido: esse laçarote é arte elevada à um conjunto de crenças? Os furos nas orelhas transmitem amor de geração para geração? As festas na maternidade são vivências de poesia? Ou pode tudo isso - disfarçado de cultura - ser só mesmo pela dor? Pais preferem fazer a circuncisão logo para já resolverem este assunto. Mas e a dor (e o sentido de tudo isso) como ficam? Uma das coisas da vida, as dores sem sentido?

Fica aqui minha reflexão sobre a nossa Cultura do Plástico (fazendo um trocadilho sobre as cirurgias plásticas, e as dores sem sentido hehehe). Estamos tão envolvidos e acostumados com esse olhar sobre a vida e sobre a infância que pode ser nojento ou cruel realizar um sacrifício animal em nome de uma criança que nasce e, ao mesmo tempo, pode parecer natural usar cola no cabelo de bebês.

Ou ainda procedimentos dolorosos estéticos ou que envolvam crenças pseudo-cientificas.

"Cultura são artes elevadas a um conjunto de crenças" - busque as suas artes, seus sentidos, suas crenças. Se não, é só dor mesmo.