quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Cocô com hora marcada

Quem tem algum contato com os pequeninos conhecem suas necessidades constantes de cuidado básico. Atenção com seu ritmo, alimentação, descanso e higiene são conteúdos intrínsecos à primeiríssima infância, tão importantes quanto brincar, relacionar-se com o colega, construir as bases para o desenvolvimento sadio.Grandes desafios para os pais .

No entanto, quando observamos o contexto escolar, nos deparamos muitas vezes com propostas massificantes e potencialmente perigosas: vocês já ouviram falar de desfralde coletivo?

Imagem encontrada no Pinterest

Não cansamos de repetir que cada criança é única e que um acompanhamento presente de suas necessidades e particularidades é a base para esse crescimento? Como pode então uma escola propor que todas as crianças sejam obrigadas a usar o banheiro - o que implica em aquisição de um controle fisiológico que é impossível de forjar, o controle de esfíncteres - no mesmo tempo? Na mesma "idade escolar"? Como supor que fazer aniversario de 2 anos transforme uma criança em outra criança ?

Isso fala para muito além de uma prática prejudicial à criança. Isso se trata de um profundo desconhecimento social, que ecoa com muita força nos espaços coletivos, do que é ser criança. Isso se trata, em última instância, de uma profunda falta de respeito. Um abuso sem precedentes.

Mas ora, como farão os profissionais da educação infantil, cuidando de quarenta crianças ao mesmo tempo se cada uma delas tiver um horário diferente, uma necessidade diferente. Pois é. Como farão? 

Me surpreende - mas nem tanto - que os problemas sejam resolvidos repassando para os mais fracos todo o ônus. Quer dizer que para viabilizar a rotina massificada da escola infantil estamos propondo, de novo, desrespeitar a criança? Li comentários de alguns sobre essa questão do desfralde dizendo:
- Coitadas das educadoras(funcionarias da creche) que tem que então trocar fraldas de crianças ate 5 anos !!! Tentei ser solidário ao comentário mas realmente me pareceu que a educadora coitada era mais criança que a própria criança neste caso.Coitad@ ?Que lugar ocupa este adulto? Esta nesse lugar de adulto de cuidar de uma criança com suas peculiaridades e é vista como coitada ?

Já não basta que tenham nascido fora de trabalho de parto muitas vezes por cirurgias mal indicadas, fora de seu tempo de maturação. Já não basta que lhes tenha sido negado o direito ao seio materno imediatamente ao nascer, que tenham sido picados, medidos, sugados e cutucados sem necessidade. Já não basta que tenham ficado horas chorando nos bercinhos aquecidos. Não basta que tenham sido obrigadas a mamar na hora que era conveniente para os adultos, para os profissionais de saúde envolvidos inclusive. Não basta que tenham ficado amarrados em carrinhos e cadeirinhas para não dar trabalho. Também não basta que tenham decidido que exatamente aos seis meses deveriam estar prontos para comer. Já não basta que não tenham sido jamais respeitados em seus desejos básicos de fome, de sono, de movimento. 

Vamos também corroborar que tenham prazo para aprender a fazer xixi e cocô no vaso?

Na prática, por mais bizarro que isso possa parecer, nosso conhecimento coletivo sobre infância e direitos é muito parco e recente, e por isso essas sandices tomam proporções aumentadas. 

Até poucos séculos a criança era apenas um adulto mal formado, alguém que ainda não estava pronto, alguém que precisa de muita ajuda de alguma boa alma caridosa para superar o estorvo de não ser grande. Políticas públicas para a infância, são coisas extremamente atuais. Infelizmente, numa retomada conservadora do nosso atual cenário, estamos vendo que os paradigmas para a educação infantil vem acompanhando esse ideário medieval, anulando as tímidas conquista. Por exemplo, existe no governo atual a ideia de que a primeira dama - por sua característica supostamente solidária e benevolente - será a "embaixadora" dos projetos sociais para crianças pequenas.

Cena do videoclipe Another Brick in The Wall de 1979 - crítica ao sistema de educação massificado

Ou seja: não se trata mais de conhecer, investigar, estudar e aplicar políticas multidisciplinares para um grupo da população. Se trata de colocar uma boa moça para "ajudar". É essa mentalidade, de que crianças não são cidadãos de direito, e sim coisinhas esperando para crescer, que valida  práticas absurdas, como o desfralde coletivo, e tantas outras.A boa moca por sua vez precisa ser poupada da criança mais lenta ,no seu ritmo natural, pois coitada da boa moca .

Não custa lembrar que para o sistema social em que vivemos é extremamente importante que os seres humanos nasçam e cresçam sob o estigma do controle de outro alguém. O desfralde coletivo, tal qual as outras práticas absurdas na infância trabalha para esse projeto de mundo opressor e indigno.

Por favor, respeitem as crianças como os seres humanos que são.