quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

"Tenho alergia a drama"

**Por Anne Rammi**

Sabe o que acontece quando você é amiga do pediatra dos seus filhos, e ele, mais do que zelar pela saúde da criança, zela pelo coração e mentes da família toda? Você comenta numa postagem de uma amiga em comum e ele aparece serenamente na sua mensagem dizendo: vamos desenvolver esse tema?

A alérgica a drama sou eu. Mãe de três, pessoa adulta e, para tornar esse desenvolvimento um pouco mais fácil, pessoa de capricórnio (sim, eu vou começar culpando o meu signo para falar desse assunto espinhento que é o turbilhão emocional ao qual estamos constantemente expostos quando criamos e educamos crianças pequenas - e me parece que as grandes também e os adolescentes, deus nos ajude! -  e quem sabe, pessoas de áries, sagitário, escorpião e um monte de lua em câncer).

Cabe contar que desde que eu tive meu primeiro filho, me enveredei pelas práticas mais humanizadas de criação. Sempre gostei de um chamego intenso, muito colo, muito peito (suspiros em homenagem). E sempre me permiti, apesar da minha casca grossa, estar nesse lugar emocional, meio que sem me preocupar com qualquer conseqüência, boa ou ruim.

Acontece que a vivência da maternidade tem me levado a tirar conclusões interessantes sobre a tal "criação com apego" ou seja lá qual for o nome para essa tendência que vivemos no nosso micro-universo (que devo registrar aqui, um universo de privilegiados) de estar em plena fusão de emoções. E sei lá, ou a gente anda fazendo isso muito errado, ou o apego tem mesmo um prazo de validade.

Serei sincera: há um limite em mim de acolher qualquer tipo de emoção alheia, e ele está diretamente ligado ao tamanho dos meus bebês. Vou chutar que deve ser em quilos. Eu aguento drama forte até uns 12/ 15kg. Começou a passar disso, me empipocam as alergias. E há dramas que eu não consigo lidar.

Claro que essa é uma metáfora para falar do que preciso aqui: estou conhecendo o meu limite, como mãe e gente, para dar conta do que é minha emoção e do que é a deles e quais são os assuntos onde devo me meter e onde não devo. Quando serei a mãe do Caillou e quando serei a mãe do Charlie Brown. 

Um bebê inconsolável que está totalmente frustrado porque eu tirei o garfo que ele enfiava na tomada encontrou em mim um porto de conforto. Encosta sua cabecinha no meu ombro e chora, mamãe sabe que você queria muito, mas realmente não será possível. Quer mamar? Olha esse outro brinquedo? Vamos invocar a Margarita Valência e criar umas barreiras físicas para essas tomadas. Totalmente Mary Poppins.

Agora uma mini pessoa que já pode limpar a bunda sozinho entra numa disputa de horas de choro ardido e sem lágrimas, por um pedaço do resto do adesivo que descolou da parede velha, com a outra criatura que já calça quase trinta e tem chulé... Caramba, minhas colegas, será que foi o excesso de colo? São mimadas essas criaturas? Vamos jogar essa tralha no lixo? Precisam mesmo da minha ajuda para resolver esse tipo de dilema? Vai logo minha gente, argh! Às vezes baixa a diretora da escola da Matilda.

Os grandes estudiosos da educação levantarão teorias sobre os pedidos deslocados "há alguma coisa incomodando, é preciso saber ler o que está por trás". "O objeto é a extensão da criança" e não importa que seja um bagulho catado no lixo, se é importante para ele, deve ser tratado com respeito. "Os adultos precisam estar centrados para não despejar sua frustração nas crianças". E todas as sugestões de psicoterapia, vai fazer yoga, consuma alimentos macrobióticos, aceita jesus e outras indicações de vida-zen (que eu finjo não escutar, porque... né? aqui é punk-rock-anarquia)

Ok, eu concordo com os estudiosos, eles são ótimos e devem ter ficado muito tempo lendo e escrevendo seus livros enquanto alguém arrumava espaço emocional para lidar com os mais variados dramas, como "ele pegou o azul que tem bolinhas e minha cor favorita é o rosa então eu preciso desse e ele falou semana passada que meu cabelo era feio porque a pulseira do pokemon sumiu".


via GIPHY (eu quando começa o drama)

O que seria da teoria sem a prática não é mesmo? 

Quando os dramalhões dessa estirpe acontecem eu vejo um claro limite no meio do meu peito, uma agonia de não dar conta dessa intensidade, é tão nítido que eu não tenho espaço para lidar com aquele drama, que me baixa a criação com desapego: olhar fuzilante, cara de desprezo para o pedaço de resto de adesivo, e de vez em quando um sermão ao estilo anos oitenta: VOCÊS VÃO PARAR OU QUEREM QUE EU PARE!??

Dentro dessa ótica, de descobrir limites, tento manter a minha consciência clara: não endosso violência física, mas sou humana também nessa relação. Se o drama me faz mal, eu tento me afastar dele. A consciência do limite - meu e do que eu acredito ser certo - é o que segura a forte emoção de apelar paras as estratégias mais eficientes, incríveis, terapêuticas duvidosas como: ENGOLE ESSE CHORO! ME DÁ AQUI ESSA PORCARIA DUAS SEMANAS SEM TEVÊ! e coisas do tipo.

Longe de mim dar dicas, mas eu peço com recorrência que se acalmem, tomem uma água e tentem falar comigo sem miar. "Mamãe não entende nada quando você fala desse jeito, melhor me explicar sem chorar para ver o que eu posso fazer". Firme e gentil, enquanto por dentro eu me vejo arranhando minha própria cara "para, para, para de miar, fala direito peloamordedeus!! onde foi que eu errei!!!"

Outra coisa que tenho percebido é que mandar resolver sozinho, acaba resolvendo mesmo. Demora mais tempo e às vezes são soluções tortas (tipo, um soco na cara do irmão e pronto! peguei o que eu queria, resolvido!). Mas poxa vida camarada, eu mesma não sei resolver todos os meus problemas com maestria, deveria esperar que eles soubessem? 

A última coisa que quero deixar registrado é que, apesar da minha consciência de limites quanto às minhas atitudes, eu escorrego direto para as emoções e estratégias eficientes, incríveis, terapêuticas duvidosas. Gente do céu, o mais velho tem sete anos, eu já devo ter gritado uns dois mil decibéis somados! Também não ignoro as minhas próprias falhas, vou lá e peço desculpas. Fazer o que né? Às vezes, imediatamente depois do meu xilique: "errei galera, perdi completamente a paciência, vocês sabem que a mamãe não reage bem a esses dramas. Vou tentar ser mais gentil, mas por favor, colaborem vocês também."

E sigo eu a tentar me acalmar, também, a regra tem que valer para todos. Bebo uma água, desapego do que não parece importante e tento resolver comigo mesma, sem causar mais drama. Afinal, tenho alergia! 

quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Amamentação: Precisamos falar de prazer

Quando observamos a Amamentação sob a luz da ciência nos deparamos com impressionantes dados sobre a superioridade nutricional do leite materno, sobre o favorecimento do desenvolvimento cognitivo do bebê amamentado, sobre os benefícios para a saúde da mãe e todo o rol de proteção e prevenção também para a saúde do bebê.

As descobertas acerca da composição do leite, processos fisiológicos de sua produção, tipos de leite perfeitamente elaborados para cada situação de cada bebê são surpreendentes. É tecnologia de ponta, essa coisa de amamentar. 

Tanto que não há fórmula no mundo que chegue perto dessa qualidade, por mais avançada que seja a indústria. E sobre isso, todos nós lactivistas, nunca iremos discordar. As campanhas dos órgãos públicos ficam focados em difundir este conceito : Benefícios do aleitamento para a mãe, o bebe e a sociedade !

Mas temos observado que quando as discussões sobre amamentação são encabeçadas pela "superioridade do leite" e outros tantos benefícios, perdemos a chance de debater, e em especial de VIVER, aspectos humanos desse processo, transformando o ato de amamentar em uma meta a ser atingida e o próprio leite em um produto. "A escolha pelo melhor". 

Mas quem irá praticar este aleitamento ? Conhecemos as necessidades desta produtora de leite materno? Sequer ela existe? Tem medos, fantasias ou uma historia de vida? Estamos interessados em conhecer esta mulher?

Ilustração por Paulien Maria
Tratar esta questão de aleitamento na forma de que é o melhor para todos, faz de nós consumidores, apenas. Não estamos falando de indivíduos e das possibilidades de encontro entre um bebê e sua mãe. Não estamos falando da vida humana pulsante que queremos e acreditamos ver num recém nascido e numa mulher que acaba de se descobrir mãe. É bastante possível que ela conheça todos estes benefícios de amamentar, mas será que ela confia na sua capacidade e está em condições de viver com potência este papel?

Amamentação sob a luz da humanidade é acima de tudo um lugar no tempo-espaço de descoberta ou continuidade de PRAZER para os dois principais envolvidos, mãe e bebê. Nunca deveria ser "vendido"como obrigação, como uma necessidade extrema. Quando conseguimos olhar para este tema como uma oportunidade de encontro mútuo, como uma possibilidade de viver uma experiencia de prazer entre a mulher e seu bebê, poderemos melhor ajuda-la a conseguir superar as imensas dificuldades que irão aparecer durante esta jornada.

Muita coisa contribui para a amamentação não acontecer. Tem muito para não dar certo. mas enquanto sobrecarregarmos as mulheres com mais esta obrigação, tarefa, função, mais distantes estamos de atingir um lugar aonde mãe e bebê vivam com prazer e alegria este encontro tao especial e mágico.

Precisamos repensar a forma de falar sobre aleitamento materno !
Precisamos falar desse encontro e de prazer!

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Classismo e comida de verdade

Todo mundo que quiser participar de um debate precisa ter a habilidade de transitar entre verdades individuais e verdades coletivas. Entre a nossa casa e o mundo. E em cima disso, reconhecer que é possível que várias verdades caibam em um só lugar. Individualmente vivemos embates a cerca de possíveis verdades. Imaginem quantas possibilidades surgem num debate.

A alimentação é um tema sensível dentro da mater-paternidade contemporâneas . Desde que a Bela Gil deu voz a uma reflexão antiga que trata da importância da comida de verdade, estamos vendo uma escalada desse assunto e com ele uma suposta polêmica: comer bem é um privilégio? Comida de verdade é classista? Inúmeros famosos pela arte de cozinhar ou simplesmente por serem famosos povoam os canais de televisão divulgando alguma marca verdadeiramente melhor e mais saudável. O que seria a comida de verdade? Ela é definida pelo poder de compra e portanto pela classe social do consumidor ?

Oras mas é claro que sim. Vamos exercer nossa habilidade de viajar pela amplitude e compreender que talvez na nossa mesa não seja lá um grande desafio substituir a feijoada em lata pelo feijão jalo banhado por 24h e cozido com sal do himalaia. Mas vivemos em um mundo onde pessoas morrem de fome, correto? Comer, em si é um privilégio. Comer bem então... 


No entanto essa reflexão não precisa ser usada para atacar qualquer um que tenha como objetivo ou vontade a alimentação sadia. Dar um novo significado ao prazer de comer repensando a cultura alimentar da própria família, principalmente quando nascem os filhos pode ser muito rico.

A quem serve problematizar a prática da comida de verdade a ponto de "validar" a comida enlatada na mesa de pessoas que, como nós, teriam toda a possibilidade de fazer uma escolha melhor apenas baseado em 1) informação 2) vontade? A quem interessa apresentar uma profissional da TV como dona de casa preocupada em descongelar a comida pre-preparada mais adequada como se ela fosse consumidora deste tipo de alimento?

É certo de que o efeito colateral de criticar a alimentação infantil baseada na chia orgânica (que convenhamos, merece sim alguma crítica) pode ser favorecer o outro lado do pêndulo. E talvez seja essa a tônica desse debate: como refletir e melhorar nosso conhecimento individual sobre isso de modo a não prejudicar conquistas da sociedade? Nossa casa, nosso mundo? Compreendemos que o que comemos e como comemos é o aspecto cultural que mais nos define ?

A indústria de alimentos ultra processados vem perdendo espaço para essa ampliação de consciência e anda sedenta exatamente por esse tipo de embate: é muito interessante para a indústria que estejamos com raiva da colega do lado porque ela dá conta, quer, escolhe, ama, pode, prefere uma comida toda trabalhada na saúde enquanto por nossas próprias condições e peculiaridades andamos escolhendo "o que dá". 

Trago um exemplo do universo vegano. A acusação de que o Veganismo é elitista - porque supostamente substitui alimentos de origem animal por alimentos processados ou mais raros, e portanto caros, como os cogumelos sei-lá-o-que ou o hambúrguer de soja - é bastante plausível. De fato, o acesso à produtos veganos é de um privilégio sem fim, em um mundo (novamente, para a gente não se acostumar com esse absurdo) em que crianças morrem de fome. No mesmo tempo essa crítica é equivocada que só ela, e parte de um lugar de algum desconhecimento da prática. Primeiro porque a vida vegana é extremamente acessível e é a falta de informação que faz as pessoas acreditarem que precisarão trocar a linguiça de porco pela linguiça de soja. Não é exatamente essa a proposta. Além disso, no grande espectro, o Veganismo é um fator de economia sem precedentes. Porque invoca uma utilização absolutamente sustentável da natureza. Portanto uma crítica rápida como "Veganismo é classista" acerta em cheio em um panorama e é completamente errada em outro. 

Duas verdades no mesmo lugar.
Nao podemos esquecer que os altos preços praticados quando se retira um elemento como lactose, glúten, ou mesmo a carne levam a uma confirmação de que é para poucos comer sem isso ou aquilo.

Concluindo: alimentação saudável é classista sim. Precisamos tomar um cuidado enorme para que não se aumente essa distância entre aquele que come quando tem e aquele que pode optar por não comer. Mas ainda assim é de suma importância que comer bem esteja na pauta e que as pessoas que levam essas reflexões para frente possam atuar com liberdade, possibilizando informação. 

O contrário disso, não nos favorece, nem em casa nem no mundo.  

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

“Destruam todas as rocas”

*Por Bianca Santana

“Destruam todas as rocas”, ordenou o pai de Aurora para livrar a filha da maldição de furar o dedo e adormecer. Sabemos como segue o conto de fadas: anos mais tarde, a princesa fura o dedo em um fuso escondido em uma das torres do castelo. Bela Adormecida, encantada com o instrumento desconhecido, faz cumprir a profecia.

Sempre lembro da história quando o assunto é criança e tecnologia. Proibir o uso das telas – seja de celular, tablet, computador ou da televisão – me parece pouco estratégico, porque perdemos a oportunidade de educar para o uso destes dispositivos. Podemos até ter a sensação de pleno controle em determinada idade. Mas com o passar do tempo, e o acesso a mundos que pouco controlamos (mais conhecidos como a casa de parentes ou de amigos), nossas possibilidades de controlar vão diminuindo. 

O que fica é o que ensinamos e as relações de confiança de construímos. E como ensinar um uso saudável e seguro das tecnologias? Se você mesmo passar horas e horas em mais conexão com as telas que com as pessoas, qualquer discurso vai perder força frente ao exemplo. Estabelecermos nós mesmos relações de equilíbrio com o digital me parece essencial. Além disso, oferecer a oportunidade de brincar ao ar livre em praças, parques ou no quintal vai ser sempre muito interessante, nem precisa colocar como contraponto à tecnologia. 

Cena da versão Disney para o clássico da Bela Adormecida

Convidar para a leitura no papel, cozinhar, conversar, pintar, moldar, os jogos de tabuleiro... Apresentar inúmeras possibilidades de diversão constrói um repertório no qual o aplicativo do celular é apenas uma delas. Aqui em casa, quando o pai apareceu com um tablet, delimitamos dois horários semanais para utilizar o aparelho. Semanas depois percebemos que não era necessário porque o uso livre estava equilibrado nos cerca de 30 minutos a cada dois ou três dias, como havíamos pensado. Mas seguimos observando se estamos na medida. 

Vale ressaltar aqui que respeito e compreendo quem defende que crianças não tenham acesso às tecnologias ou quem acha que o uso livre indiscriminado é válido. Se responsabilizar pela educação de alguém implica tomar as decisões que julgar mais pertinentes, em realidades que são sempre distintas. Esta é minha visão, depois de alguns anos trabalhando com esta temática em escolas e projetos educacionais, e da relação com meus filhos, de 8 e 6 anos, e minha filha de 4. 
Temperança. 
Equilíbrio. 
Busca pela medida. 

Passar o dia na frente da tela é evidentemente nocivo. Mas presenciar minha filha filmando a peça de teatro dos irmãos no quarto de casa com o celular, ou encontrar o filho do meio fazendo buscas sobre os animais da Floresta do Congo me mostram como os usos do digital podem ser interessantes. Fico incomodada quando o mais velho fica vidrado em um jogo na tela, mas melhora bem quando percebo a mesma concentração para montar um lego ou terminar de ler um gibi. Usos ativos e criativos dos dispositivos tecnológicos podem ser mais uma, das muitas brincadeiras das crianças urbanas. 

*Bianca Santana é jornalista e professora. Doutoranda em Ciência da Informação e mestra em Educação pela USP.

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

"Que bom que ninguém sabe se é importante ou não aprender a escrever à mão livre."

*Por João Carlos Ferreira

Daniel Kahneman é um psicólogo que ganhou um prêmio Nobel em... economia. Ele escreveu um livro denso e excelente sobre como nós, humanos, funcionamos chamado Thinking, Fast and Slow (Rápido e Devagar - Duas Formas de Pensar). Quando me pediram algumas linhas sobre infância e tecnologia, o livro de Kahneman veio imediatamente à mente: o tema é quente, as opiniões são fáceis, mas as certezas não passarão de ilusões, nosso cérebro se convencendo de algo não provado e que não se pode provar.

Os extremos são fáceis de condenar. Uma criança que passe as tardes em frente à televisão (meu caso nos anos 1970), computador ou vídeo game pagará preços altos de saúde e socialização. Uma criança sem acesso algum à tecnologia terá um déficit de conhecimento e de capacidade de lidar com o mundo contemporâneo, talvez irreversível.

Qual então o meio do caminho aceitável? "Dosis sola facit venenum" (“Só a dose faz o veneno"), Paracelsus, dritte defensio, 1538.

Já li especialistas condenando o acesso a smartphones por crianças pequenas. Meu filho mais novo já deslizava o dedo na tela antes de caminhar. Aos cinco anos, ele assiste a cerca de 60 minutos de filmes (Youtube e Netflix) por dia e fica satisfeito, sai imediatamente para brincar com as ideias desenvolvidas ao assistir os vídeos.

Fonte da Imagem 

A formação de uma pessoa não é um evento repetitivo e de curta duração que nos permita apreender muitas regras absolutas por mera observação ou, mesmo, com sofisticados protocolos de pesquisa. Por isto, felizmente, no acesso à tecnologia durante a infância ainda temos um espaço privilegiado de experimentação, um espaço no qual pais e educadores podem atuar de acordo com seus valores e princípios, sabendo que não errarão muito, nem acertarão por completo.

E por que “felizmente”? Você já parou para refletir sobre quanto do nosso comportamento deixou de ser uma decisão individual e passou a ser uma imposição da sociedade? Do uso do cinto de segurança à idade de ingresso na educação formal, do leite pasteurizado ao conteúdo que se pode ter acesso, somos cercados por regulação abrangente e crescente. Que bom que ninguém sabe nos dizer o que acontecerá de diferente entre uma criança que passe duas ou quatro horas fazendo uso de gadgets por dia, que bom que ninguém sabe se é importante ou não aprender a escrever à mão livre. Aproveitemos esta rara liberdade das famílias escolherem seus caminhos.

Membro da International Coach Federation, capítulo São Paulo

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

"É natural o uso da tecnologia e da linguagem midiática na infância." - por Rosa Bertholini

AS CEM LINGUAGENS DA CRIANÇA

Loris Malaguzzi


A criança é feita de cem.

A criança tem uma centena de línguas,

cem mãos, uma centena de pensamentos,

uma centena de maneiras de pensar, de brincar, de falar.


Uma centena. 

Sempre de uma centena de modos de escutar

de admiração, de amar, cem alegrias

para cantar e compreender, 

cem mundos para descobrir,

cem mundos para inventar,

cem mundos para sonhar.


A criança tem uma centena de línguas

(E um cem cem cem mais)

mas eles roubam 99.

A escola e a cultura separa a cabeça do corpo.


Dizem-lhe:

de pensar sem as mãos,

fazer sem cabeça

para ouvir e não falar,

de compreender sem alegria,

de amar e de maravilhar-se

só na Páscoa e no Natal.


Dizem-lhe:

para descobrir o mundo já está lá

e do cem

eles roubam 99.


Dizem-lhe:

que trabalho e lazer

realidade e fantasia

ciência e imaginação

o céu e a terra

razão e sonho

são coisas

que não pertencem juntos.


E assim eles dizem que a criança

que o cem não existe.

A criança diz:

De jeito nenhum. O cem é lá.




INFÂNCIA E TECNOLOGIA


*por Rosa Bertholini

Como educadora os assuntos que permeiam a infância em seu território poético e potente me chamam a atenção e me levam quase que por impulso vital correr atrás de informações, opiniões, estudos que possam colaborar em minhas reflexões e, principalmente, que possam permitir ações equilibradas que não se reduzam a discursos morais e politicamente corretos. 

O uso das tecnologias na infância ultimamente vem ocupando espaços significativos nas rodas de conversa, desde as acadêmicas, científicas e profissionais que atuam diretamente ou não com a infância e profundamente nas famílias.

A tecnologia na sociedade contemporânea passou a ocupar um lugar de referência na vida profissional, na aquisição de conhecimento, no lazer, nas relações e, as crianças nascidas nesse novo século, onde a tecnologia é o alicerce da modernidade e das ações do meio social, crescem sustentadas pelos tabletes, celulares, computadores, games, netflix, redes sociais, etc.

Os nossos temores na verdade, perpassam pelo impacto que o uso indiscriminado das tecnologias pelas crianças possa atingir o seu desenvolvimento emocional, cognitivo e a sua saúde física e mental. 

Esses dias tive acesso a uma pesquisa interessante realizada pela AVG Technologies, com famílias de todo o mundo, onde mostrou que 66% das crianças entre 3 e 5 anos de idade conseguiam usar jogos de computador, 47% sabiam como usar um smartphone, mas apenas 14% eram capazes de amarrar os sapatos sozinha. No caso das crianças brasileiras, o levantamento apontou que 97% das crianças entre 6 e 9 anos usam a internet e 54% têm perfil no Facebook.

Parto então por um caminho que considero mais seguro, “nem tanto ao mar nem tanto à terra”, pois penso e venho em minha prática educativa, cada vez mais me aproximando do “caminho do meio”, todo exagero faz mal. 

Em maio participei de um grupo de estudos nas escolas de infância em Reggio Emilia, cidade ao norte da Itália, onde uma das mesas o tema foi “Natureza digital – investigação da creche à escola primária”, onde a pedagogista Maddalena Tedeschi trouxe algumas reflexões. A criança desde cedo brinca com o imaginário, o digital permitiu de maneira mais próxima, mais natural a realização disso, o potencial de imagens da criança se expande, o digital casa bem com mente complexa. Somos hoje naturalmente digitais.

Penso então que é natural o uso da tecnologia e da linguagem midiática na infância. Me reporto ao poema de Loris Malaguzzi “As cem linguagens da criança” onde poeticamente descreve a potência da infância através das centenas de linguagens que ela possui. O conhecimento não pode estar separado do mundo, e para ter significado e gerar aprendizado precisa estar contextualizado com a realidade das crianças, e os recursos tecnológicos, midiáticos e digitais também entram nesse contexto.

Fonte da Imagem

As indagações que nos inquietam é conjugar essa linguagem com todas as infinitas possibilidades das outras linguagens. É preciso abrir o debate sobre a relação entre as linguagens midiáticas e a infância, além de como os recursos tecnológicos, digitais e as mídias estão presentes e sendo utilizados.

Não é tarefa fácil encontrar a medida certa no uso das ferramentas tecnológicas pelas crianças, mas é responsabilidade nossa, dos adultos, cuidar dos nossos meninos e meninas para que possam significar suas investigações, levantar suas hipóteses, criando e recriando seus significados. 

Permitir ou não permitir, limitar ou não limitar o tempo de uso, não é necessariamente a solução. 

Cabe sim estarmos presentes nas descobertas da infância, cabe sim exercitarmos o diálogo respeitoso, cabe sim desenvolvermos uma escuta atenta, e isso só é possível no contato humano, tarefas que nenhuma tecnologia poderá substituir!

* Pedagoga, fundadora da Escola Teia Multicultural e diretora pedagógica da Educação Infantil. Pesquisadora dos encantos da primeira infância – de 0 a 6 anos. Mãe de 4 filhas que já foram crianças, vó de 6 e tutora de umas 100 crianças que alegram e dão sentido a minha missão de educadora.

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Infância e Tecnologia: resistir numa bolha ou sucumbir?

* Por Courtnay Guimaraes Jr.

Ao receber o convite para escrever sobre tecnologia e crianças (Das pequeninas às maiores), bateu uma esquizofrenia existencial. Desde que me entendo por gente, tecnologia sempre fez parte da minha vida (e olha que lá se vão 46 solstícios de vida). Mas antes, ela vinha disfarçada de cotidiano e não me impedia de viver um universo físico mais amplo do que se dispõem as crianças, em especial as habitantes das grandes cidades… Como cientista e tecnólogo (trabalho com ciência da computação há 31 anos), tendo a ser extremamente pro-tecnologias. Como pai de três infantes de menos de 4 anos, reflexões mais profundas me atormentam… O debate é amplo, mas geralmente falamos de tecnologia num contexto restrito às telinhas e telonas (Com ou sem joysticks) da tão propalada sociedade digital. Mas não se limita apenas a este contexto. Dentre devaneios, conversas intensas de pais, filosofanças vãs e discussões apaixonadas e acaloradas, enfrentamos dilemas e escolhas sobre umas tantas, como por exemplo: 

Imagem: Freepik
• Remédios são tecnologias. Assunto mais que polêmico atualmente, mas a alopatia é a parte mais aguda dessa crise tecnológica. Hipermedicação já deveria ser considerada até epidemia, uma vez que as superbactérias estão ai para provar o efeito nefasto. Mas e aquela dipirona mágica que resolve a febre insistente? Claro, há alternativas. Mas vale a pena? Ou porque não valeria? Debate amplo… • Vacinas são tecnologias. Correntes pró, correntes contra, vão se digladiando diariamente (de preferência apenas em meios virtuais). Um debate importante mercê um espaço mais amplo do que existe atualmente, afinal, qualquer inovação que não passou de um século ainda não tem seus efeitos completamente mapeados. Neste aspecto, meu lado tecnólogo e cientista pesa muito mais, portanto, sou pró-vacinas neste aspecto. 

• Comida industrializada é tecnologia. Para alimentar os bilhões de seres humanos que pululam nosso limitado planeta, foi desenvolvida uma gigantesca massa de conhecimento para industrializar e transformar alimentos para todos. Com benefícios e malefícios (estes últimos ainda desconhecidos), sabemos que hora ou outra cedemos a um “industrializado”. A vida moderna quase que impõe praticidade e é quase impossível fugir desta tecnologia, principalmente nos países de primeiro mundo. Mas aqui venceu o neto de cacauicultores, criado quase que no mato: Comida só feita na hora, de preferência com alimentos organicamente cultivados, ao máximo possível (item do próximo tópico). 

• Agroindústria alimentícia é tecnologia. Meus primeiros anos de trabalho com tecnologia foram justamente na agroindústria. De melhoramento de rebanhos lá nos anos 80, a gestão financeira de fazendas, sempre acompanhei de perto esta evolução. Perdi a inocência neste sentido muito cedo. De sementes transgênicas a todo tipo de fertilizante, de pesticidas de efeitos completamente desconhecidos a rações com todo tipo de enriquecimento químico, há de tudo. Técnicas de clonagem (animal e vegetal) são a única maneira de se produzir abundante e economicamente a quantidade necessária de alimentos. Peixes confinados, a base de rações, complementam a lista. Mas, impossível esquecer a moderna tecnologia de pesca, devastando espécies. Novamente, o menino criado no mato fala mais forte. Ao máximo, evitamos, mas confesso que 100% da carne bovina, ovina, suína e aves, são industriais. Peixes ainda conseguimos alguma produção ribeirinha, mas ou vêm de pesca industrial, ou de cativeiro (camarões, salmão, etc). Aqui, somos reféns humanos das limitações que nós mesmos produzimos para sobreviver em nossas enormes concentrações. 

• Transporte é tecnologia. Como vivo em São Paulo, impossível viver sem carro. Mas já incutimos nas crianças a inviabilidade de andar em coisas anteriormente cotidianas. Andar de ônibus foi uma aventura (antes só vista nos desenhos da BBC). Metrô, contados nos dedos de um dos gêmeos. 99% do tempo, caro, movido a petróleo. Num conjunto de outros, que geram a inversão térmica, o clima seco e as famigeradas bronquites de inverno. Novamente, me sinto vítima. Adoraria umas pedaladas com as crias, mas, mais que segurança (atropelamento mesmo), tudo é distante aqui nesta cidade. 

• Controles de ambiente são tecnologia. Estou falando de ar-condicionado, humidificadores, aquecedores e afins. Quase não questionamos ligar nossos aparelhos e “harmonizar” o ambiente. Mas a que custo? Será que a longo prazo seremos seres biologicamente melhores, vivendo sempre a 24º e 70% de humidade? Isso cria resistência e adaptabilidade nos pequenos? Por força de saúde, não abrimos mão do humidificador. Do resto, roupas quentes no inverno e crianças peladas no verão, vamos tocando. 

• E o que dizer de mídia? A incrível e manipuladora tecnologia do marketing e da propaganda nos invadem totalmente a inconsciência, coletiva e individual, propalando consumo amplo e irrestrito, se possível, no mais imediato impulso. Veja, clique, pague, mais uma inutilidade é sua. Só que com os pequenos, a proporção é cruel. Quem não ouviu 10398123030123813 vezes a famosa “Lérigou”, não imagina como é cruel uma criança de 3 anos assistir uma peça de aliciamento mental e nunca mais esquecer daquilo, para em seguida ser enxurrada de merchandising. Mas há os lados positivos (ou males menos danosos), como as séries de desenho educativo (Turma Umizoomi é o primeiro exemplo que me vem à mente). E ai? Resistir numa bolha, sucumbir? 

• Fechando uma longa lista de exemplos, a medicina humana é tecnologia pura atualmente, mas existem 3 grandes capítulos neste tema, que valem ser citados. o Médicos x Médicos x Médicos x Médicos: Médicos “tecnocratas”, se é que podemos usar uma expressão tão pesada, nos impressionam com centenas de especializações, cursos, workshops e técnicas revolucionárias de benefícios garantidos. Remédios de última geração, intervenções cirúrgicas à lazer e por robôs, tudo para garantir cura quase imediata e sequelas quase zero. Mas, humanidade, tendendo a zero idem. Numa outra linha de pensamento, médicos mais “humanizados” (mais uma expressão estranhíssima na minha opinião) usam de menos pirotecnia e mais de acolhimento, conforto, viram amigos íntimos, mas deixam áreas cinzentas aos cuidados da natureza. Para pais principiantes, estes dois extremos apavoram igualmente. Já aos naturistas, homeopatas, tratamentos milenares e alternativos (acupuntura e afins), abrem um outro leque imenso de possibilidades, a maioria sem comprovação científica (e mais debates religiosos acirrados), mas com estatísticas de cura crescentes. Finalmente, avôs e avós de fazenda, cheios de ervas, chás e outras ditas “curandeirices” acharam espaço em uma diminuta mas seleta turma de médicos naturistas e integralistas. Muitas opções, divergências, conflitos de interesse e gigantescas industrias a se beneficiar de cada uma das linhas. Resta a nós, cuidadores, escolher o caminho de maior conforto ao casal. 

Aqui, temos muitos conflitos, minha alma de cientista grita e esperneia pelas provas práticas da medicina alopática (afinal, a mãe natureza é apenas justa e cruel, mantendo apenas os mais aptos vivos e foi para isso que construímos a ciência, para sobreviver como espécie e contra as limitações a nós impostas), mas as vivências mais naturais e as experiências com a medicina humanizada trouxeram outros alentos. Ponto muito em aberto… o Hospitais x tratamentos naturais domésticos: Qualquer ida ao pronto socorro demonstra a aguda crise que a praticidade da vida urbana nos impõe. Filho doente é empecilho, buscamos a cura rápida, no pronto socorro mais próximo, via intravenosa de preferência. Diagnósticos de amplo espectro (é uma virose) direcionam quase que imediatamente a uma profilaxia idem. Antibióticos, anti-inflamatórios e lá se foi uma chance de ouro de se criar um pouco mais de imunidade nos novos humanos. 

Mas quem tem disponibilidade para ficar 6, 8 horas acompanhando o/os filhos, vendo evolução / involução de febres, tratando com métodos caseiros ou não? Hoje, tenho a sorte de a minha esposa olhar para uma das crianças e saber com grande certeza se é hora de ir ao hospital ou não. De resto, crises mais graves vêm sido tratadas em casa. Afinal, ledo engano e ingenuidade de quem acha que ambiente hospitalar tem baixo risco… Ao contrário. o Reprodução: Tivemos filhos por inseminação e as amplitudes de tratamento (de escolha do sexo ao infinito possível para garantir o nascimento dos bebes perfeitos), nos traz uma imensa lista de debates éticos. Em breve, numa clínica perto de você, clonagem de órgãos. Você deixaria seu filho morrer podendo clonar um órgão dele? A lista destas e de outras tecnologias já imperceptíveis, mas não menos polêmicas, é quase infindável, mas parece que ultimamente a discussão tem muito mais foco atual em telas, aparelhos e seus aplicativos viciantes. 

Mas antes de chegar às crianças em efetivo, já chegaram em poluição sócio-ambiental. Como rejeitar algo a uma criança que vê, ao vivo e a cores, em quase todos os lugares, adultos (e muitas crianças) consumindo telas a todo instante? Limitamos em casa, buscamos escolas limitantes, mas em qualquer reunião humana, celulares já são onipresentes (smarwatches começam a ser idem). O singelo ping do whatsup em aparelhos android já passa a ser parte da cotidiana poluição sonora assim como buzinas e roncos de motor… O que dizer aos pequenos? Em breve, geladeiras, fogões, aspiradores e robôs domésticos passarão a pulular nossas casas. E ai? Pra onde fugir? Em resumo, dos derivados de petróleo (tecnologia petroquímica) aos avanços da biotecnologia, tecnologias, seus avanços, seus debates éticos e suas consequências infindáveis nos permeiam e intensificarão nossa realidade próxima (e das crianças, em qualquer idade). Responsabilidade nossa, adultos em teoria conscientes, dosar e equilibrar os benefícios frente às consequências nefastas. Arregacem as mangas, sejamos ativos e conscientes, afinal, temos filhos! 

* Courtnay Guimaraes Jr. Antes, executivo com 30 anos de mercado, economista especializado em mercado de capitais, diretor de tecnologias da informação para mercado financeiro na Hewlett Packard Enterprise e professor de gestão estratégica da inovação na Business School São Paulo.

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Tecnologia Feliz

** Por Paulo Schor ** 

Frequentemente recebo crianças para avaliação no consultório e uma das queixas bem frequentes diz respeito a pouca distância entre a televisão ou o ipad, e os olhos dos pequenos. Sim. esse pode ser um sinal de alta miopia, principalmente se houver real dificuldade de reconhecer objetos a certa distância (mais de 2 metros), mas na maioria das vezes trata-se de um comportamento de "aproximação" do foco de atenção, e não um sinal de doenças nos olhos. Porém o mais difícil não é diagnosticar esse ou aquele aspecto oftalmológico, mas sim explicar aos pais que ficar perto dos monitores não causa mal algum aos olhos. 

Essa não é a resposta e nem o (des)incentivo esperado da maioria dos pais. Nesse cenário a tecnologia entristece e não ajuda os pais a lidarem com a "adição" das crianças aos aparelhos que produzem som e audio. Deve ser clara a distinção entre "fazer mal para a vista" e "não ser adequado para a criança", e nós, oftalmologistas, precisamos fazer parte dessa discussão. 

Imagem: Freepik

Perder oportunidades de socialização e descobertas, com individualização excessiva não parece construtivo para as crianças. Mesmo "não fazendo mal para os olhos", essas atitudes exacerbadas não trazem "o bem". Por outro lado incentivamos a leitura, desenho e atividades lúdicas "para perto", e hoje sabemos que ha uma tendência secular, que vem aumentando ao longo das gerações (e já se fala em passar "de pai para filho"), de uma miopização da população. 

A mudança de hábitos na Coreia do Sul parece explicar um aumento da taxa de míopes de 20 para 80% em algumas gerações, e estudos mostram miopia de quase meio grau (a mais) em crianças que leem mais. O que fazer com essa informação? Evitar a leitura para perto e colocar óculos bifocais nas crianças? Alguns estudos mostram que essas medidas restringem o crescimento ocular, mas a que custo e em que medida isso se da? Vale a pena tal "sacrifício"? Lidar com a tecnologia de modo "neutro" e ter as informações corretas é o primeiro passo para não exagerar seu uso e nem demonizar seus malefícios. A ciência continua nos mostrando fatos, e cabe a sociedade fazer o melhor uso possível deles. O equilíbrio ainda parece ser o melhor remédio.

Me chamo Paulo Schor, estudei na classe do caca na USP de ribeirão preto. Sou pai da já crescida Marina e agora a Luiza cresce. Hoje estou como professor chefe do departamento de oftalmologia da escola paulista de medicina da Unifesp.



quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Tecnologias: nem proibidas, nem obrigatórias. Por um uso consciente e humanizado

Por Michelle Prazeres*

Vivemos numa era em que as telas são aparatos cada vez mais pessoais e fazem parte das nossas vidas cada vez mais cedo. Não dá para ser contra as tecnologias, porque elas estão aí e fazem parte de nossas vidas; mas também não precisamos nos entregar aos delírios de consumo e nos fazermos reféns. Especialmente para lidar com as relações entre a infância e as tecnologias, enquanto mães e pais, precisamos exercer nosso papel de mediadores e guardiões destas crianças. Mas como?

No campo da educação (especialmente a educação formal escolar) é recorrente o discurso de que as tecnologias são inevitáveis e que vem adentrando os espaços educativos “naturalmente”, na medida em que as novas gerações (que seriam “nativos digitais”) estão estabelecidas nas escolas.

Mais do que o ideário sobre a inserção “natural” das tecnologias, paira no ar uma crença de que as tecnologias podem “salvar” a educação, aproximando a linguagem e os métodos educacionais do que seria um universo discursivo mais “próximo” das crianças e jovens, pelo fato de ser algo que traz, para o ambiente “chato e hostil” da educação algo “lúdico” e que “faz parte do universo infantil”.

Coloquei entre aspas nos dois primeiros parágrafos deste texto as expressões e ideias que – a meu ver – são passíveis de problematização. Mas é fato que este é o discurso comum para vários setores da sociedade que veem com muita naturalidade as tecnologias adentrando os espaços educacionais formais.

Fiz uma pesquisa e entre os achados dela, está o fato de, por exemplo, a mídia, as empresas, o poder público e a Universidade estão falando sobre as contribuições (positivas, sempre) que as tecnologias podem oferecer aos processos educacionais.

É comum vermos este discurso de “idolatria” das tecnologias em outros setores da sociedade. Na medicina, por exemplo, é muito comum ver uma espécie de endeusamento das tecnologias “que salvam vidas”. E, em nome das que salvam vidas, “tecnologiza-se” tudo.

De que tecnologia estamos falando?

Talvez seja importante a gente conversar sobre o que é tecnologia. São muitas as correntes científicas que buscam definir o que elas são. Mas aqui, para nós, e para esta conversa sobre as relações entre tecnologia e infância, talvez seja bacana pactuarmos que estamos falando especialmente das tecnologias de telas.

Porque sim, nossas crianças nasceram em um momento que algumas pessoas chamam de Era da Informação, em meio ao que outras chamam de Cultura digital ou de Cibercultura. São as tais crianças “nativas digitais” (não gosto muito deste termo, tá?). Se formos falar de qualquer tecnologia, estamos todos convivendo com elas desde a Idade Média, então, seria legal a gente combinar aqui que esta discussão específica é sobre as telas. ;)

É fato que hoje, vivemos num momento de exacerbação tecnológica, com a proliferação dos aparatos móveis e pessoais. Cada um tem um celular e alguns ainda têm um tablet e um computador pessoal. O consumo da tecnologia se individualizou. Além disso, ele se expandiu pelas diversas faixas etárias. E é cada dia mais precoce.

Imagem: Freepik

Mas qual seria a idade ideal para começar a consumir tecnologias? Existe isso?

Olha... eu li o texto que a Anne Rammi publicou por aqui  e me senti bem contemplada pela leitura sensata que ela traz com base na experiência cotidiana de quem tem filhos e consegue promover um uso consciente das tecnologias.

Penso que nós (mães e pais) precisamos entender que estamos em um mundo povoado por estas tecnologias. Que nossos filhos – especialmente aqueles em idade escolar e que já tem contato com outras instâncias de socialização que se relacionam com as tecnologias – estão o tempo todo em contato com estes aparatos e telas. Não podemos tentar “salvá-los” deste contato. Então, talvez o modo mais bacana de olhar para isso seja reconhecendo nosso papel de mediação.

E esta mediação vai desde buscar entender qual a idade certa para eles terem aparelhos próprios (e aí, entra a decisão de cada família); e passa por estar sempre por perto para mediar conteúdos (assistir junto, problematizar, comentar sobre o que viram, não deixar entrar em contato com conteúdos não classificados para a idade). Passa também por entender qual o tempo ideal de exposição das crianças às telas.

E, passa, sobretudo, pelo que, para mim, é uma das principais questões em jogo quando a criança passa a consumir tecnologia (e os conteúdos que circulam pelas telas) sozinha: a segurança.

E para fazer esta mediação (seja do consumo dos aparatos, seja dos conteúdos) precisamos estar minimamente apropriados deste universo.

E como se apropriar para mediar?

Talvez o primeiro passo seja reconhecer a tecnologia em todas as suas dimensões. As telas são aparatos ‘concretos’, mas carregam consigo conteúdos (todo um universo simbólico) e modos de percepção (esquemas lógicos, por exemplo, que dependem de programas e softwares que usamos).

Para mediar, é preciso ter em mente que as potencialidades das tecnologias não são apenas negativas. Existem usos bacanas e possíveis da tecnologia, para melhorar processos em casa, para brincar e para estudar. Costumo dizer que precisamos olhar para o potencial humanizante das tecnologias.

Aqui em casa, por exemplo, evito telas ao máximo (o mais novo nem sabe o que é isso ainda, claro). Mas desde muito cedo, Miguel usa os celulares e telas para conversar com a família, que está longe, espalhada pelo Brasil. Desde muito pequeno, ele pede para fazer “Facetime” com a vovó e com os tios. Há como recriminar este uso da tela mesmo que seja por uma criança de 2 anos?

Precisamos de menos julgamentos. Precisamos que cada família se sinta confortável como mediadora da experiência de cada criança com as telas e seus conteúdos. Mas precisamos também que estas escolhas sejam feitas com consciência e informação.

Nesse sentido, e avançando no argumento de que, enquanto pais e mães, precisamos conhecer para mediar, devemos entender quais os possíveis riscos envolvidos no consumo de telas tecnológicas.

A pesquisa do Cetic.Br chamada TIC Kids online  nos traz algumas informações preciosas nesse sentido.

Segundo este levantamento (que abrange as crianças e jovens de 9 a 17 anos), a maioria delas usa telas e internet “todos os dias ou quase todos os dias”, acessando especialmente do celular e de tablets e fazendo isso a partir de suas casas. Os principais usos são para “rede social, trabalho da escola, pesquisas e mensagens instantâneas”.

De posse desta informação, seria interessante pensarmos nos riscos que estes acessos podem envolver. E a pesquisa enumera três exemplos: (1) tratamento ofensivo; (2) contato com mensagens de ódio; e (3) exposição de informações pessoais. Pensando nos riscos, conseguimos pensar também nas principais medidas de segurança de que podemos lançar mão.

Claro que estas são questões para crianças mais velhas. Para crianças mais novas, penso que devemos fazer um uso mediado e consciente, na linha do que a Anne Rammi propõe em seu texto, ajudando-as a problematizar alguns conteúdos e evitando que estejam muito expostas a outros. Aqui em casa, por exemplo, eu costumo obedecer à classificação indicativa do Ministério da Justiça, evito televisão aberta (por conta da propaganda abusiva) e invisto em desenhos e musicais, tentando filtrar conteúdos mais violentos. Jogos são mais raros.

No caso de bebês e crianças mais novas, existem uma série de estudos que mostram que muita exposição às telas trazem consequências para o brincar (mais restrito), para a criatividade e para a construção de raciocínio destas crianças. Eu acredito que temos um vasto trabalho de conscientização e informação sobre acesso e uso de telas para que as escolhas de mediação sejam escolhas informadas.

O que eu acho importante é a gente entender que enquanto mães e pais, somos mediadores; que esta mediação deve ser consciente e informada e que cada família deve ter tranquilidade para decidir o que é melhor para suas crianças, ainda que pense igualmente que o Estado tem um papel fundamental na construção de políticas de informação e proteção à infância (este item rende um texto à parte sobre a ausência do Estado na regulamentação do setor da comunicação).

Acredito também que cada família tem direito à paz interior e a não ser julgada socialmente por oferecer telas a seus pequenos.

Vale lembrar que a tecnologia nem nos salva, nem nos condena. A chave são os usos que fazemos dela. Os usos são de cada um e cada uma. De cada coletivo. De cada família. De cada grupo, cada sociedade. Cada grupo conhece seu contexto e suas possibilidades e limitações. Avancemos nos apoiando e nos informando, sem julgamentos. E estas escolhas tendem a ser muito mais saudáveis para nós, para nossas crianças e para a sociedade.





* Michelle Prazeres é jornalista, professor e Doutora em Educação, mas sua melhor credencial é a de mãe do Miguel (5 anos) e do Francisco (5 meses).

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Crianças e Tecnologia por Ana Cristina Duarte

Eu tenho visto as crianças crescendo, não só as minhas, mas várias que fui atendendo como doula e parteira nos últimos 12 anos. Fui observando e entendendo diferentes formas de criar os filhos em tempos de tecnologia.

Precisamos antes de tudo pensar em faixas etárias. Crianças pequenas precisam ter contato com o mundo real, com os objetos, com panelas, com potes de plástico e colheres de pau. Precisam ir para os parques e praças e seus pais precisam fazer um esforço especial de prover a eles o espaço e o tempo de brincar. Esse esforço vai se compensar no futuro com crianças criativas e capazes de se entreter com coisas muito simples.

Crianças maiores já podem começar a ter contato paulatino com as tecnologias, mas não haverá nunca o tempo em que os pais vão se descuidar dessa questão. Porque as telas encantam, sugam a atenção, porém limitam a imaginação. O conteúdo vem formatado, desenhado, colorido e sonorizado. Não sobra espaço para pensar muito. Por outro lado existem outros tipos de tecnologia que são muito interessantes de serem apresentados para as crianças, como os brinquedos de aprendizado, para fabricação de robôs, circuitos elétro-eletrônicos e assim por diante.

Não vamos achar que crianças vão ver os pais o dia todo no celular e vão se encantar com um banco de areia. Por isso é imprescindível que os pais dediquem tempo seus filhos, para brincar junto, para estar junto e para criarem juntos.

Ana Cristina Duarte
Obstetriz



Imagem: Freepik

terça-feira, 4 de outubro de 2016

Crianças e Tecnologia: usando bem que mal tem? Mas eu sei usar bem?

**Por Anne Rammi** 

Eu olhava com empáfia todos os casais que eu via nos restaurantes neutralizando a criança atrás da tela do celular. Achava aquilo o cúmulo do absurdo, onde já se viu, num momento de família como a refeição preferir ou permitir que o filho se aliene dessa maneira, correndo todos os riscos que as pesquisas já comprovam, desde transtornos alimentares até todo o derretimento do cérebro! (ok eu não lembro exatamente o que versam as pesquisas, mas que tela faz mal para a criança, isso ninguém vai contestar).

Acontece que minha empáfia passou no dia em que eu desejei que meu carro fosse equipado com televisões no banco de trás, dessas que a gente vê nos carros da riqueza, depois de algumas horas da viagem farofenta onde meus três filhos alternaram entre brigas, socos, pontapés, choros, catarses, tédio, vômito e cocô na calça, presos em um congestionamento interminável.

(Trecho do meu diário)

Aquelas cenas que só acontecem no carro dos outros. Ou nas propagandas.

Hoje vou contar um pouco, sob minha experiência como mãe, artista plástica, comunicadora, documentadora pedagógica, pesquisadora da infância e ativista pela proteção da criança contra a publicidade infantil, de como enxergamos a relação entre infância e tecnologia.


  • Não existe dissociar a criança da tecnologia para as famílias que optaram por criar seus filhos nos ambientes urbanos e, per se, tecnológicos.
  • Até porque, a teconologia bem aplicada é uma ferramenta de linguagem maravilhosa e poderosa. 
  • O que existe é a necessidade (e a urgência) de uma profunda reflexão sobre quantidade, qualidade e finalidade da interação entre crianças e tecnologia.
  • Tipo, escola com televisão para "distrair"a criança. Ou escola que apresentra trechos de filmes ou vídeos contextualizados nos processos que as crianças estão vivendo? Ou ainda, escola que oferece o audio visual como linguagem curricular. Tem uma baita diferença né?
  • Eu entendo tecnologia desde o celular, passando pelos tablets e TVs, produtos culturais ou games, porventura aquelas aulas de robótica das escolas contemporâneas, passando pelas câmeras fotográficas e o espremedor de laranja.
  • Mas a regulação que me interessa em casa é em especial relacionada às telas, e em algum tempo (meus filhos ainda não foram impactados por essa demanda) às redes sociais.
  • A melhor prática que eu adotei quanto às telas foi: adiar o contato o máximo possível. O quanto mais tarde o contato melhor. Telas são realmente viciantes e as crianças precisam se esforçar bastante para cumprir os combinados de tempo e conteúdo. Não é fácil para eles, não sendo fácil, é preferível que estejam mais maduros para lidar.
  • Uma vez apresentados às telas sempre fazemos combinados claros.
  • Um deles é que não se usa tela para nada além de se usar a tela. Ou seja: a tela não é acompanhante de sono, banho, comida, nada disso. Se está jogando, está jogando e só.
  • Isso alimenta minha ilusão de que estou fazendo o melhor possível no quesito mindfulness com crianças abaixo dos seis anos que super curtem uma Tv e um joguinho.
  • Quanto aos horários: em casa, Tv à noite funciona melhor que Tv de manhã hoje em dia. Mas houve um tempo em que se assistissem televisão à noite, não dormiam. 
  • Quanto ao tempo de exposição: descobrimos um limite e aqui em casa gira em torno de 2h. Mais do que isso a criança azeda, estraga, fica duríssimo de lidar depois. 
  • Quanto ao conteúdo: temos (sem dó nem piedade, num esquema nada democrático) proibido alguns temas de acordo com os valores de nossas famílias. Por exemplo, conteúdos machistas são imediatamente banidos das listas "do que assistir". E haja sermão da mãe explicando que aquele desenho está equivocado quando diz que menina gosta de arrumar a casa e menino gosta de jogar bola.
  • Em casa tem um calendário semanal marcado quando são os horários das telas. Atualmente eles respeitam bem o calendário e sempre pleiteiam mudar as regras, o que eu acho construtivo e fofo. Às vezes eles ganham, e eu apelo para a finalidade: A Tv nesse momento é muito importante para a mamãe conseguir descansar (mentira, arrumar a cozinha, quem eu estou enganando?).
  • A mesma regra do "adiar" vale para o tipo de conteúdo. Se aos dois anos você já liberar os "Avengers" não há "Pokemon" que sustente os quatro anos. Vá devagar, e perceba que quanto mais estimulante, mais estímulo a criança demanda.
  • Os games são outra relação de interface, bem diferente dos desenhos, e se requintam na dificuldade de fazer os combinados. Exatamente porque demanda uma interação e estão programados para fazer a criança consumir (vidas, águia poderosa, sei lá mais o que). A relação com os games é segunda fase, módulo avançado. Eu acredito que, idealmente, quanto mais tarde melhor. Imagino que isso deva acontecer também com as redes sociais, mas ainda não cheguei lá.
  • Uma coisa legal de saber é que quanto menor a tela, mais alienada a criança fica. Então, para viver no inferno sem abraçar o diabo, prefira video games ligados na Tv, por exemplo, que a família possa brincar junta, ao joguinho no celular. 
  • Mas é aquilo, normal, se no meio de uma viagem farofenta você sentir o desejo incontrolável de usar a tecnologia para manter sua sanidade. Só saiba que uma vez aberta, essa porta é um saco para fechar.
  • Aqui em casa as crianças não mexem no meu celular, e um dos grandes motivos, além da alienação, é que se trata de um equipamento do meu trabalho. Mentira, eu não ligo para a alienação, eu só não posso comprar um celular novo caso um dos pentelhinhos derrube o troço na privada. Essa é uma regra clara que eu consigo bancar, o pai tem menos apego, e um celular bem mais pobre. Então tende a liberar de vez em quando.
  • As minhas grandes preocupações e motivos pelos quais eu acredito que é preciso sim refletir, discutir, regular e mediar o contato com a tecnologia na verdade não estão ligadas ao que dizem "as pesquisas" sobre o desenvolvimento infantil, muito embora eu acredite nelas. Minhas preocupações são: publicidade infantil e pedofilia.
  • A tecnologia do jeito que nos é dada, da forma como chega naturalmente na vida das crianças é muito perniciosa. Ela é uma ferramenta da publicidade para coagir a criança e formar um comportamento consumidor. Seja no boneco licenciado que conta lindas histórias no desenho animado mas vende carne que provoca câncer no supermercado ou seja no joguinho aparentemente inofensivo que monitora comportamento de consumo e trajetos da criança e repassa dados para as corporações.
  • É com essa tecnologia que eu me preocupo, que serve para atuar na mente dos meus filhos para formá-los para o consumo antes que estejam formados para a cidadania. Por isso eu sempre vou sonhar com (e defender com unhas e dentes) a regulação efetiva da publicidade infantil. 
  • O Brasil é campeão mundial em pedofilia. 70% da internet de conteúdo pedófilo é hospedada no Brasil. O uso das redes e da tecnologia precocemente e sem acompanhamento coloca as crianças em risco, é simples assim. 
  • Além dos casos graves de estupro e assédio contra menores de idade via web, uma criança mal assistida no uso da tecnologia pode ser alvo fácil para conteúdo impróprio: pornografia, ainda que defendida pelo liberalismo, é uma ferramenta de construção de uma masculinidade opressora e violenta. Não é ok nenhuma criança em nenhuma idade (nenhuma pessoa na verdade) ter acesso à pornografia nos modelos que conhecemos, que são degradantes à mulher e ameaçam a segurança física e emocional de todos os envolvidos. 
  • Infelizmente a tecnologia que nos proporciona aprender, compartilhar, criar e ampliar nossos horizontes, também nos expõe a problemas reais na vida contemporânea.
  • Enquanto não há regulação efetiva - por exemplo, a proibição da publicidade infantil, contemplando sanções para infrações digitais também - teremos que regular em casa mesmo.



Claro que eu estou propositadamente resumindo uma longa reflexão de mais de seis anos sobre infância e tecnologia em tópicos sucintos. Existem muitas vertentes que podem ser contempladas nesse cenário. Mas hoje consigo me afastar do julgamento individual contra a família que alimenta a criança atrás da Peppa - ainda que eu continue achando isso um absurdo. Consigo encontrar onde estão os pontos inegociáveis dessa relação aqui na minha casa, como para mim é o caso do celular ou dos conteúdos machistas e violentos. E consigo acompanhar o desenvolvimento de meus filhos no mundo em que vivem, e não naquele que eu acho que seria melhor para eles. E claro, sigo sonhando com DVDs no banco de trás do carro. Mas só para os casos de acidentes na pista.

PS: Não posso deixar de registrar meu desprezo total por penico com tablet, mas o texto era sobre crianças e tecnologias e não sobre as fronteiras da estupidez humana. ;) 




sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Como ser pai do meu filho tendo sido filho do meu pai

Homens sem filhos, quando decidem que um dia os terão, ou são surpreendidos quando descobrem que serão pais, imaginam que um dia dobrarão essa barreira do desconhecido, se dividem geralmente em dois grupos distintos.

Ou questionam tudo que lhes foi feito na infância, sonhando com uma renovação plena do papel de pai e com filhos idílicos (que só poderiam ser mesmo filhos da falta de realidade), ou concordam cegamente com seus modelos de pai. Simplesmente não questionam. Não param para pensar nisso. Principalmente quando sua história como filho, tem um pai ausente.Principalmente numa sociedade que não enxerga a paternidade como algo importante e muito bom de ser vivido.Quando a sociedade concorda que o importante é a MÃE !

A consciência de que é preciso saber transitar entre os papéis de pai e filho, inclusive quando se é pai sendo filho e filho sendo pai, é algo que só acontece em algum momento, estranhamente, de ser pai e filho.Quando ao nascer seu filho você se depara com esse novo papel : Sou pai agora !

Confuso?

Oras: ser pai do meu filho é ser filho do meu pai ao mesmo tempo. Existem momentos em que eu, como pai, questiono o que me foi feito como filho. Quem era meu pai ? Quem serei eu como pai? Esse sou eu, sendo pai e sendo filho. E há momentos em que acato tudo o que meu pai disse, porque agora filho, tenho eu. Me perco na diferenciação entre eu e meu pai. Entro em conflito com as minhas memórias, pois ha magoas do filho guardadas. Mas talvez agora seja tempo de acolhe-las e tentar curá-las. E consigo atingir dentro de mim a lucidez de ser pai que foi possível ao meu. Esse sou eu, sendo filho e sendo pai.

Transitamos, quando os filhos nascem, para um outro lugar, e a ideia de que abandonamos o antigo é às vezes motivo de confusão de sentimento: essa bagagem carregaremos para sempre, de ter sido filho de alguém que enquanto era pai, também foi filho de alguém. Transmiti-se a cada geração um modelo familiar de "Pai", os homens da família. E na busca do próprio modelo teremos que conhecer este legado familiar para poder absorver e romper com ele. O difícil de conhecê-lo é que geralmente é uma lembrança de magoa ou dor ou ainda de ser superior.

Questionar e acolher o passado na vida presente. Sim e não. Pai e filho.
São essas as dicotomias que precisamos aprender a lidar com saúde. Com alegria!
É isso que faz da gente melhores pais para nossos filhos, por perdoar nosso pai. Ao fazer isso podemos perdoar nossos erros. É isso que faz da gente filhos melhores para nossos pais, por humanizar nosso filho, humanizamos nossas relações parentais. Deixamos uma herança mais leve!

Esse documentário é sobre como somos preparados para crescer como homens nesta sociedade. Não é apenas sobre a sexualidade masculina, mas principalmente sobre o cidadão homem, o ser humano homem e a solidão de ser homem!
A pergunta é: Sou um cara legal comigo?
As outras são mais fáceis de responder!





Nesse sábado, na Roda de Pais do Espaço Nascente falaremos de Heranças!
Venha contar sua historia ou apenas ouvir as histórias.
Venha perceber que são varias possíveis histórias.
Venha correr o risco conosco de poder mudar essa história !
Venha !


Ilustração Rodrigo Bueno 


quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Cocô com hora marcada

Quem tem algum contato com os pequeninos conhecem suas necessidades constantes de cuidado básico. Atenção com seu ritmo, alimentação, descanso e higiene são conteúdos intrínsecos à primeiríssima infância, tão importantes quanto brincar, relacionar-se com o colega, construir as bases para o desenvolvimento sadio.Grandes desafios para os pais .

No entanto, quando observamos o contexto escolar, nos deparamos muitas vezes com propostas massificantes e potencialmente perigosas: vocês já ouviram falar de desfralde coletivo?

Imagem encontrada no Pinterest

Não cansamos de repetir que cada criança é única e que um acompanhamento presente de suas necessidades e particularidades é a base para esse crescimento? Como pode então uma escola propor que todas as crianças sejam obrigadas a usar o banheiro - o que implica em aquisição de um controle fisiológico que é impossível de forjar, o controle de esfíncteres - no mesmo tempo? Na mesma "idade escolar"? Como supor que fazer aniversario de 2 anos transforme uma criança em outra criança ?

Isso fala para muito além de uma prática prejudicial à criança. Isso se trata de um profundo desconhecimento social, que ecoa com muita força nos espaços coletivos, do que é ser criança. Isso se trata, em última instância, de uma profunda falta de respeito. Um abuso sem precedentes.

Mas ora, como farão os profissionais da educação infantil, cuidando de quarenta crianças ao mesmo tempo se cada uma delas tiver um horário diferente, uma necessidade diferente. Pois é. Como farão? 

Me surpreende - mas nem tanto - que os problemas sejam resolvidos repassando para os mais fracos todo o ônus. Quer dizer que para viabilizar a rotina massificada da escola infantil estamos propondo, de novo, desrespeitar a criança? Li comentários de alguns sobre essa questão do desfralde dizendo:
- Coitadas das educadoras(funcionarias da creche) que tem que então trocar fraldas de crianças ate 5 anos !!! Tentei ser solidário ao comentário mas realmente me pareceu que a educadora coitada era mais criança que a própria criança neste caso.Coitad@ ?Que lugar ocupa este adulto? Esta nesse lugar de adulto de cuidar de uma criança com suas peculiaridades e é vista como coitada ?

Já não basta que tenham nascido fora de trabalho de parto muitas vezes por cirurgias mal indicadas, fora de seu tempo de maturação. Já não basta que lhes tenha sido negado o direito ao seio materno imediatamente ao nascer, que tenham sido picados, medidos, sugados e cutucados sem necessidade. Já não basta que tenham ficado horas chorando nos bercinhos aquecidos. Não basta que tenham sido obrigadas a mamar na hora que era conveniente para os adultos, para os profissionais de saúde envolvidos inclusive. Não basta que tenham ficado amarrados em carrinhos e cadeirinhas para não dar trabalho. Também não basta que tenham decidido que exatamente aos seis meses deveriam estar prontos para comer. Já não basta que não tenham sido jamais respeitados em seus desejos básicos de fome, de sono, de movimento. 

Vamos também corroborar que tenham prazo para aprender a fazer xixi e cocô no vaso?

Na prática, por mais bizarro que isso possa parecer, nosso conhecimento coletivo sobre infância e direitos é muito parco e recente, e por isso essas sandices tomam proporções aumentadas. 

Até poucos séculos a criança era apenas um adulto mal formado, alguém que ainda não estava pronto, alguém que precisa de muita ajuda de alguma boa alma caridosa para superar o estorvo de não ser grande. Políticas públicas para a infância, são coisas extremamente atuais. Infelizmente, numa retomada conservadora do nosso atual cenário, estamos vendo que os paradigmas para a educação infantil vem acompanhando esse ideário medieval, anulando as tímidas conquista. Por exemplo, existe no governo atual a ideia de que a primeira dama - por sua característica supostamente solidária e benevolente - será a "embaixadora" dos projetos sociais para crianças pequenas.

Cena do videoclipe Another Brick in The Wall de 1979 - crítica ao sistema de educação massificado

Ou seja: não se trata mais de conhecer, investigar, estudar e aplicar políticas multidisciplinares para um grupo da população. Se trata de colocar uma boa moça para "ajudar". É essa mentalidade, de que crianças não são cidadãos de direito, e sim coisinhas esperando para crescer, que valida  práticas absurdas, como o desfralde coletivo, e tantas outras.A boa moca por sua vez precisa ser poupada da criança mais lenta ,no seu ritmo natural, pois coitada da boa moca .

Não custa lembrar que para o sistema social em que vivemos é extremamente importante que os seres humanos nasçam e cresçam sob o estigma do controle de outro alguém. O desfralde coletivo, tal qual as outras práticas absurdas na infância trabalha para esse projeto de mundo opressor e indigno.

Por favor, respeitem as crianças como os seres humanos que são. 

terça-feira, 13 de setembro de 2016

A Culpa é da Mãe! Onde está o Pai?

PARTE 1

Antes de iniciar a nossa série de conversas “A Culpa é da Mãe!” e “Onde está o Pai?” precisamos introduzir um modo de pensar distinto do jeito frequente de pensar as crises e dúvidas diante dos acontecimentos do nosso dia a dia, principalmente quando se fala de filhos.

Vamos começar com um exemplo:
Pense em uma criança, um menino com seus 3 anos que já anda, fala o suficiente para um diálogo, tem vontades próprias. Uma criança que encanta e incomoda os adultos a sua volta diante do exercício da sua autonomia. A mamãe e o papai levam o menininho para uma festa cheia de crianças, brinquedos bacanas, comida gostosa e cheirosa, ambiente colorido, personagens infantis, amigos, gritaria, corre-corre, empurra-empurra, brinquedos altos e distantes do chão, personagens gigantes com bocas grandes e vermelhas, comidas quentes ou frias demais, adultos que se dão o direito de tocar e dar bronca no menininho sem cerimônia, pessoas estranhas.


Diante desse cenário conflitante, papai, mamãe e menininho podem seguir alguns caminhos:
1. Pai e Mãe empurram o menino para aquele universo de atração e repulsão, espaço de presença e ausência. Pais que, para a criança, “não querem” ele por perto, e, para os pais, o que eles “querem” é que o menininho aproveite o lugar bacana. Nessa situação, a criança pode sentir-se magoada com o “empurrão” e colar nos pais, Ou arriscar-se no ambiente externo sem se perceber pequena num mundo de adultos, num ambiente de adultos;


2. Pai e Mãe, ao contrário do modo anterior, julgam o lugar perigoso e temem pelo filho e, sem perceber, seguram-no, achando que estão protegendo o menino para que ele não corra risco nenhum naquele lugar cheio de perigos. O ambiente é visto como ameaçador. Já a criança, diante da atitude de proteção dos pais, pode viver um medo paralisante, ou um “tudo pode” perigoso, desafiando os pais;


3. Pai empurra o filho e, ao mesmo tempo, Mãe segura o menino, ambos partindo das suas histórias e experiências como aluna(o) e como filho(a). Nessa situação, as verdades prontas dos pais não deixam lugar para as experimentações necessárias da criança. Poder relacionar-se com outras pessoas. Poder relacionar-se com este novo ambiente. Nessa combinação, uma criança pode “escolher” confiar no pai Ou na mãe, e, seguir no seu processo de desenvolvimento isolando partes em si, parte do pai e parte da mãe, e fora de si, ambiente seguro e ambiente perigoso, acreditando em mundos fragmentados!


E aí, estão entendendo aonde queremos chegar?! São verdades distintas convivendo no mesmo lugar! Todos querendo o bem estar (?) do seu jeito, nas suas dúvidas e certezas. Cada corpo, de modo objetivo e subjetivo, vai vivendo os seus Conflitos, interna e externamente a cada um. O menininho, a mamãe e o papai e todos os presentes na festa estão habitando o mesmo espaço mas o sentem, percebem-no e agem de modos distintos. Temos, no exemplo dado, um campo de forças com várias orientações e, pasmem, todas são verdades possíveis! Podem ser vistas varias dimensões de um mesmo lugar e com cada um, simultaneamente, percebendo determinada parte do mesmo acontecimento.

E agora, que loucura é essa? Como vamos viver sem o conhecido e falido controle das coisas ao nosso redor?! Como podemos propor liberdade com limites?! Existe liberdade com limites?!

Nossas conversas, aqui lançadas, vão propor negociações entre as várias verdades que coexistem no mesmo ambiente. Ambiente é entendido como o lugar no qual encontramos as diferenças e semelhanças, no qual cada um define, até certo ponto, o certo e o errado para si mesmos. A criança decide em quem confiar, quem define este ambiente seguro.

Vamos interagir por meio de perguntas e respostas, de propostas de questionamentos. Vamos falar sobre temas como: pés para dentro ou pés para fora do carregador; bebês/crianças sentadas em W, pode?; postura em pé, correta ou errada?; Mamãe X Papai, quando dar colo ou encorajar um afastamento, etc...

Fiquem conosco e nos ajudem partilhando os questionamentos que acompanham vocês. Quem sabe duas pessoas, um médico (pediatra) e uma fisioterapeuta (terapeuta alfa corporal), que unem suas forças, podem promover uma reflexão compartilhada?! 


PARTE 2

Como falar sobre as necessidades e os interesses que acompanham os corpos presentes nas famílias sem reconhecer as partes distintas que precisam e devem coexistir/dividir o mesmo espaço? A única verdade absoluta que permeia as relações familiares e sociais é a de que uma verdade só não contempla os aspectos singulares de todos os que convivem em um mesmo ambiente. Cada um traz seu próprio olhar e a própria forma de sentir e perceber uma situação. Cada um traz sua verdade diante da mesma situação, baseada na sua própria história.

Continuamos provocando um modo de pensar novo para, então, sermos capazes de conversar sobre aspectos mais objetivos. Uma tentativa de instalar um ambiente que favoreça determinada escuta e possa gerar condição para que cada um aposte em influenciar e ser influenciado, resultando numa troca favorável a todos. Isso é diferente de afirmar OU negar a informação com a qual estamos em contato. A percepção de uma realidade em camadas, na qual o melhor não corresponde ao idealizado, mas ao que é possível, isto é, ao melhor possível, não ao melhor idealizado. Baseando-se no melhor possível, cada um participa da situação do seu jeito e age buscando o melhor que não exclui novas possibilidades. Não exclui porque negocia com as diferenças. De que modo? Estabelecendo uma composição entre várias partes, uma negociação entre as referências, entre as pessoas presentes no acontecimento, entre as possibilidades/impossibilidades de ações. Tudo isso é importante, mas, o principal é ter a capacidade em desconstruir a ilusão de uma técnica infalível para lidar com as diversas situações.

Quando tratamos do tema filhos, essa característica do certo OU errado, do melhor OU pior fica acentuada. Os temas podem virar arenas de combate gerando medo, isolamento, enfraquecimento, raiva e desinformação. Ao invés de colaborar uns com os outros, abre-se a possibilidade de acusar uns aos outros. Na tentativa de encontrar uma ação mais amorosa e protetora e, ao perceber uma ação diferente no outro em relação ao seu filho, muitas vezes a conversa vira uma briga. O que um fala é ouvido como ameaçador e não como a possibilidade de fazer diferente.

Vamos pensar nos corpos da mãe e do quase bebê em seu ambiente uterino e problematizar a afirmação de que “a culpa é da mãe”.

O corpo do bebê, antes de nascer, permanece dentro do corpo da mãe. Dentro, o corpo dele é contornado pelo corpo da mãe que, para o bebê, é uma outra camada de si, que o sustenta, vitaliza e contém. Não existe o outro, tem ele, o bebê. Não é por mal; simplesmente ele precisa crescer e viver e não sabe nada além disso. Para tal aventura, conta com o espaço, nutrientes e disponibilidade do que vai chamar, no futuro, de mãe. Nessa fase, não existem consciência, palavras e ações escolhidas. Existir é a questão que move o corpo do bebê e seu corpo orienta o organismo na direção de mais vida. Claro que existem outras camadas da existência do bebê, coisas que desconhecemos, talvez. Para a continuidade dessa vida, entretanto, o corpo da mãe é ambiente necessário. A mãe existe a partir da própria experiência de vida desse bebê. E a partir desse bebê.

Para o corpo da mãe, o bebê ocupa o espaço possível e o quase impossível. De modo objetivo e subjetivo, o bebê vai ocupando muito espaço, dentro e fora da vida da mãe, mesmo antes de nascer. Partes vitais da existência da mãe são espremidas e vivem a experiência de perigo. O diafragma, por exemplo, músculo importante da respiração, localizado entre o tórax e a cavidade abdominal. No organismo, esse músculo, vai separar e aproximar qualidades aéreas das terrestres, pensamento e digestão, por exemplo, além de ser o principal músculo da respiração. Durante a afirmação da vida do bebê, no amadurecimento do corpo dele, o corpo da mãe vive o risco de negação de vida em si, vivido na falta de espaço para respirar. A expansão do bebê interfere na possibilidade de expansão de sua mãe. Essa realidade que pode ser tanto objetiva como subjetiva, geralmente, não impede que a mãe ame e espere alegremente a chegada do seu bebê. Antes mesmo do bebê nascer, ela, frequentemente, já sonha com características e modos de se relacionar com essa parte de si, que vai ter um nome que ela vai escolher. Ela prepara e antecipa a realidade que o bebê vai viver e tem certeza de que ele vai ser muito feliz. A mãe consegue se expandir a partir desse bebê quando se percebe gerando vida dentro de si. É uma experiência subjetiva, pois seu corpo está impedido de expandir.

Fusão de corpos, essa é a realidade comum entre bebê e mamãe. O pai, onde está o pai nesse momento? (Iremos falar sobre isso em outra publicação)

Vocês enxergam as possibilidades de conflitos na experiência da mãe que coexiste com a experiência do bebê? É só bom? Só ruim? Existem conflitos legítimos? Será possível acreditar em fórmulas prontas para viver os acontecimentos que se configuram tendo os corpos da mamãe e do bebê fusionados?

No mesmo ambiente, vamos enxergando realidades distintas. De modo objetivo, para o bebê, o corpo da mãe inexiste, tudo é ele mesmo. E, para a mamãe, de modo subjetivo, o bebê já existe, com base nas suas expectativas. A expectativa de presença do filho, para a mãe, gera um ambiente de possibilidades/impossibilidades. O bebê é tão vital dentro de si quanto um órgão como coração ou fígado. Mas a sua relação com esse filho nascido confirma nela as possibilidades e impossibilidades imaginadas.

Como será que cada um, mãe e bebê, vive e sente essa realidade de verdades distintas coexistindo no mesmo espaço e tempo? Onde fica o papai diante dessa fusão? O reconhecimento dessa fusão pode gerar reflexões importantes. O reconhecimento da fusão, objetiva e subjetiva, pode orientar os corpos para aquilo que vitaliza esses corpos.

Quando entendemos que as relações são baseadas em verdades distintas, somos capazes de pensar de modo a caber mais gente. A falta de percepção daquilo que acontece simultaneamente, como no exemplo dos corpos do bebê e da mãe, interrompe o diálogo entre as pessoas no aspecto mais rico da interação: as diferenças de percepção, de consciência, de ação e de conhecimento de cada ser humano coexistindo no mesmo espaço e tempo. A possibilidade de estarmos bem diante do conflito.

Estamos conversando sobre nos aproximarmos baseados na semelhança, mas somos capazes de seguir nos desenvolvendo apostando também na diferença. A partir das diferentes formas de perceber o ambiente e de reagir a ele, podemos construir em nós mesmos novas possibilidades de ação.

Compartilhe suas reflexões. Vamos co-operar o texto e os saberes, dando mais sentido para a nossa participação. Qual o recorte que você faz desta nossa reflexão compartilhada?

PARTE 3

DENISE:
Confesso que me senti “perdida” quanto ao tema “Onde está o Pai”. Aceitei e me deixei ficar neste ambiente estranho, acho que me senti um pouco como um pai. Diante de tantas discussões sobre o lugar da mãe, me vejo na dúvida sobre o lugar do pai. O quanto o tema mãe, mãe/filho, mãe/pai, mãe/pai/filho, mãe/dupla jornada, mãe/com e sem apego são abordados? Nas conversas informais e nos estudos científicos, sempre é a mãe que segue centralizando as duplas, os trios, as dificuldades e as certezas. A mãe é o corpo que orienta o caminho a ser feito. Isso é tão objetivo, tão concreto. Onde fica nossa subjetividade?

Diante dessa experiência, resolvemos escrever a duas vozes. Pensamos que é urgente desfazer a fusão, diferenciar o pai da mãe para, só então, podermos aproximar esses dois importantes lugares que duas pessoas devem ocupar quando resolvem ter um filho(a). Cacá, quais são as suas impressões diante da necessidade em diferenciar o pai da mãe? 

CACÁ: 
Sim, chego na conversa trazendo muitos questionamentos. 
A 1ª reflexão é sobre quando nasce a possibilidade da paternidade? Para mim, nasce a partir da experiência como filho. Possivelmente da própria experiência como um filho nascido e não da gestação do seu filho. Se vem da própria experiência do corpo em fusão, já está presente desde o começo?

O 2º questionamento é o de que a paternidade não é uma experiência tão corporal quanto a maternidade: será? Alguns homens vivem esta corporalidade de forma intensa durante a gestação. Poderia supor uma fusão mais subjetiva, embora as variações hormonais do pai durante a gestação comprovem uma participação corporal intensa.

Uma 3ª questão é: onde fica essa fusão? Poderia supor que a experiência como filho na fusão com a própria mãe pode ser revivida pelo pai nesse processo de gerar um filho. Nesse sentido, dependendo do grau de amadurecimento e fusão do filho atual com a mãe atual, o pai que vem surgindo pode encarnar o próprio corpo de pai, de fato. O Pai poderia, objetiva e subjetivamente, dar contorno ao corpo fundido da mãe/filho. A paternidade estaria em criar um ambiente propício a essa gestação/fusão.

DENISE:
Acompanhando você, penso na fusão do corpo desse filho com o corpo dessa mãe. O pai ou mãe de hoje, que um dia experimentou a fusão com o corpo da própria mãe, precisa se diferenciar desse corpo. Diante do processo de vida no qual “nasce fundido”, separa-se como menino e jovem; o filho só pode virar pai, de fato, na diferenciação do adulto. Sem a condição de adulto, o pai não pode habitar, de modo integrado, o seu lugar. Lindo isso, né?! A necessária e importante fusão do começo da vida, falamos sobre isso no texto “II - A Culpa é da Mãe! Onde está o Pai!”. 

Precisa desfazer, de fato, a fusão, o necessário e importante descolamento de corpos em suas ações, comportamentos, emoções e saberes. É importante a aceitação e a possibilidade de viver as diferenças que vão surgindo, cada vez mais, durante o crescimento dos filhos. Diferenças que garantem que um corpo siga vivendo sem o outro corpo. É preciso ter a certeza de que em vários momentos, o pai e a mãe não poderão estar com seu filho, por exemplo, estudar na mesma escola, dançar na balada com os amigos, fazer o exame do vestibular, etc...

Esse é o momento no qual reconheço duas importantes ações do pai, acompanhar e auxiliar a mãe nessa jornada de fusão E de descolamento. Ora a fusão, ora o descolamento, ambos são momentos que podem ser bem difíceis para a mãe que vem surgindo. São situações que se alternam ao longo de toda a formação do filho, gerando conflito.

CACÁ: 
A participação do pai nos cuidados dos filhos revela a possibilidade do cuidado do outro e, ao mesmo tempo, ameaça a fusão materna. O vínculo paterno expõe possibilidades de outros vínculos e fragiliza a certeza da fusão, da onipotência que ela traz em si. Nesse conflito, o pai pode ser aquele que (não) auxilia a mãe. O pai existe como outra possibilidade e experiência de cuidado. Como um amparo e um perigo. E quando ausente ou enfraquecido na sua relação com esses corpos fundidos, aparece como a incorporação da ausência que virá do processo de desfazer a fusão. Ele vai existir em presença ou ausência. Lugar difícil este do pai. 

Pensando a paternidade como ambiente, ela traz a informação de ambiente seguro, protegido ou poderá trazer a experiência de ausência e das questões ligadas a esta ausência.

DENISE:
Difícil tarefa para as duas pessoas que decidiram viver a realidade de serem pai e mãe. Como a mãe, a deusa do acontecimento vai dar ouvidos para um simples mortal? E o pai, o guardião dos territórios, como vai fazer isso, cruzar essa barreira sem atacar, julgar e criticar?

O corpo da mãe determina e orienta uma importante função, ela vai gerar uma vida. Nesse sentido, parece que o pai, diante de um conflito, pode ir embora, e a mãe é obrigada a ficar com a sua cria, ou submeter-se aos comandos do pai para que ele fique. No início da vida do bebê, a fusão dos corpos orienta e determina as ações da mãe. Depois essa realidade se fixa com a crença das próprias mães que se instalam em um lugar de que só elas sabem cuidar do filho Ou ele, o pai, não quer participar. Os estados de raiva, inveja, medo, humilhação, vitimização podem proliferar nesse ambiente no qual a mãe é a melhor e o pai é o pior, onde a mãe está presa e o pai está livre. 

CACÁ:
A mãe se inicia como um ambiente interno e o pai como um ambiente externo. Há, na natureza humana, algo de dentro para fora que está intimamente ligado às nossas capacidades e interesses e, ao mesmo tempo, existe um chamado de fora para dentro despertando em nós outras possibilidades que inicialmente não conhecemos. Já iniciamos a jornada da vida numa constante relação de dentro para fora e de fora para dentro. Inspiração e expiração. Pai e mãe e as heranças trazidas neles. Quando a relação pai/mãe, ambiente interno/externo estão fragmentadas, interferem no desenvolvimento do filho. Durante a vida, esse filho busca integrar a experiência materna com a paterna e apaziguar o conflito que vive, podendo assim estar em contato consigo mesmo e seu ambiente externo independente das expectativas trazidas nessa herança.

DENISE:
Diferenciado!


Denise De Castro: fisioterapeuta e terapeuta Alfa Corporal, escritora e pesquisadora independente. O livro “O Método Corpo Intenção. Uma terapia corporal da prática à teoria”, editora summus, tem lançamento previsto para outubro deste ano. Cadastre-se no site para informações / Leia as Crônicas de Bebês


Dr Carlos Eduardo Corrêa (Cacá): médico e pediatra aqui do Blog do Cacá.