terça-feira, 4 de outubro de 2016

Crianças e Tecnologia: usando bem que mal tem? Mas eu sei usar bem?

**Por Anne Rammi** 

Eu olhava com empáfia todos os casais que eu via nos restaurantes neutralizando a criança atrás da tela do celular. Achava aquilo o cúmulo do absurdo, onde já se viu, num momento de família como a refeição preferir ou permitir que o filho se aliene dessa maneira, correndo todos os riscos que as pesquisas já comprovam, desde transtornos alimentares até todo o derretimento do cérebro! (ok eu não lembro exatamente o que versam as pesquisas, mas que tela faz mal para a criança, isso ninguém vai contestar).

Acontece que minha empáfia passou no dia em que eu desejei que meu carro fosse equipado com televisões no banco de trás, dessas que a gente vê nos carros da riqueza, depois de algumas horas da viagem farofenta onde meus três filhos alternaram entre brigas, socos, pontapés, choros, catarses, tédio, vômito e cocô na calça, presos em um congestionamento interminável.

(Trecho do meu diário)

Aquelas cenas que só acontecem no carro dos outros. Ou nas propagandas.

Hoje vou contar um pouco, sob minha experiência como mãe, artista plástica, comunicadora, documentadora pedagógica, pesquisadora da infância e ativista pela proteção da criança contra a publicidade infantil, de como enxergamos a relação entre infância e tecnologia.


  • Não existe dissociar a criança da tecnologia para as famílias que optaram por criar seus filhos nos ambientes urbanos e, per se, tecnológicos.
  • Até porque, a teconologia bem aplicada é uma ferramenta de linguagem maravilhosa e poderosa. 
  • O que existe é a necessidade (e a urgência) de uma profunda reflexão sobre quantidade, qualidade e finalidade da interação entre crianças e tecnologia.
  • Tipo, escola com televisão para "distrair"a criança. Ou escola que apresentra trechos de filmes ou vídeos contextualizados nos processos que as crianças estão vivendo? Ou ainda, escola que oferece o audio visual como linguagem curricular. Tem uma baita diferença né?
  • Eu entendo tecnologia desde o celular, passando pelos tablets e TVs, produtos culturais ou games, porventura aquelas aulas de robótica das escolas contemporâneas, passando pelas câmeras fotográficas e o espremedor de laranja.
  • Mas a regulação que me interessa em casa é em especial relacionada às telas, e em algum tempo (meus filhos ainda não foram impactados por essa demanda) às redes sociais.
  • A melhor prática que eu adotei quanto às telas foi: adiar o contato o máximo possível. O quanto mais tarde o contato melhor. Telas são realmente viciantes e as crianças precisam se esforçar bastante para cumprir os combinados de tempo e conteúdo. Não é fácil para eles, não sendo fácil, é preferível que estejam mais maduros para lidar.
  • Uma vez apresentados às telas sempre fazemos combinados claros.
  • Um deles é que não se usa tela para nada além de se usar a tela. Ou seja: a tela não é acompanhante de sono, banho, comida, nada disso. Se está jogando, está jogando e só.
  • Isso alimenta minha ilusão de que estou fazendo o melhor possível no quesito mindfulness com crianças abaixo dos seis anos que super curtem uma Tv e um joguinho.
  • Quanto aos horários: em casa, Tv à noite funciona melhor que Tv de manhã hoje em dia. Mas houve um tempo em que se assistissem televisão à noite, não dormiam. 
  • Quanto ao tempo de exposição: descobrimos um limite e aqui em casa gira em torno de 2h. Mais do que isso a criança azeda, estraga, fica duríssimo de lidar depois. 
  • Quanto ao conteúdo: temos (sem dó nem piedade, num esquema nada democrático) proibido alguns temas de acordo com os valores de nossas famílias. Por exemplo, conteúdos machistas são imediatamente banidos das listas "do que assistir". E haja sermão da mãe explicando que aquele desenho está equivocado quando diz que menina gosta de arrumar a casa e menino gosta de jogar bola.
  • Em casa tem um calendário semanal marcado quando são os horários das telas. Atualmente eles respeitam bem o calendário e sempre pleiteiam mudar as regras, o que eu acho construtivo e fofo. Às vezes eles ganham, e eu apelo para a finalidade: A Tv nesse momento é muito importante para a mamãe conseguir descansar (mentira, arrumar a cozinha, quem eu estou enganando?).
  • A mesma regra do "adiar" vale para o tipo de conteúdo. Se aos dois anos você já liberar os "Avengers" não há "Pokemon" que sustente os quatro anos. Vá devagar, e perceba que quanto mais estimulante, mais estímulo a criança demanda.
  • Os games são outra relação de interface, bem diferente dos desenhos, e se requintam na dificuldade de fazer os combinados. Exatamente porque demanda uma interação e estão programados para fazer a criança consumir (vidas, águia poderosa, sei lá mais o que). A relação com os games é segunda fase, módulo avançado. Eu acredito que, idealmente, quanto mais tarde melhor. Imagino que isso deva acontecer também com as redes sociais, mas ainda não cheguei lá.
  • Uma coisa legal de saber é que quanto menor a tela, mais alienada a criança fica. Então, para viver no inferno sem abraçar o diabo, prefira video games ligados na Tv, por exemplo, que a família possa brincar junta, ao joguinho no celular. 
  • Mas é aquilo, normal, se no meio de uma viagem farofenta você sentir o desejo incontrolável de usar a tecnologia para manter sua sanidade. Só saiba que uma vez aberta, essa porta é um saco para fechar.
  • Aqui em casa as crianças não mexem no meu celular, e um dos grandes motivos, além da alienação, é que se trata de um equipamento do meu trabalho. Mentira, eu não ligo para a alienação, eu só não posso comprar um celular novo caso um dos pentelhinhos derrube o troço na privada. Essa é uma regra clara que eu consigo bancar, o pai tem menos apego, e um celular bem mais pobre. Então tende a liberar de vez em quando.
  • As minhas grandes preocupações e motivos pelos quais eu acredito que é preciso sim refletir, discutir, regular e mediar o contato com a tecnologia na verdade não estão ligadas ao que dizem "as pesquisas" sobre o desenvolvimento infantil, muito embora eu acredite nelas. Minhas preocupações são: publicidade infantil e pedofilia.
  • A tecnologia do jeito que nos é dada, da forma como chega naturalmente na vida das crianças é muito perniciosa. Ela é uma ferramenta da publicidade para coagir a criança e formar um comportamento consumidor. Seja no boneco licenciado que conta lindas histórias no desenho animado mas vende carne que provoca câncer no supermercado ou seja no joguinho aparentemente inofensivo que monitora comportamento de consumo e trajetos da criança e repassa dados para as corporações.
  • É com essa tecnologia que eu me preocupo, que serve para atuar na mente dos meus filhos para formá-los para o consumo antes que estejam formados para a cidadania. Por isso eu sempre vou sonhar com (e defender com unhas e dentes) a regulação efetiva da publicidade infantil. 
  • O Brasil é campeão mundial em pedofilia. 70% da internet de conteúdo pedófilo é hospedada no Brasil. O uso das redes e da tecnologia precocemente e sem acompanhamento coloca as crianças em risco, é simples assim. 
  • Além dos casos graves de estupro e assédio contra menores de idade via web, uma criança mal assistida no uso da tecnologia pode ser alvo fácil para conteúdo impróprio: pornografia, ainda que defendida pelo liberalismo, é uma ferramenta de construção de uma masculinidade opressora e violenta. Não é ok nenhuma criança em nenhuma idade (nenhuma pessoa na verdade) ter acesso à pornografia nos modelos que conhecemos, que são degradantes à mulher e ameaçam a segurança física e emocional de todos os envolvidos. 
  • Infelizmente a tecnologia que nos proporciona aprender, compartilhar, criar e ampliar nossos horizontes, também nos expõe a problemas reais na vida contemporânea.
  • Enquanto não há regulação efetiva - por exemplo, a proibição da publicidade infantil, contemplando sanções para infrações digitais também - teremos que regular em casa mesmo.



Claro que eu estou propositadamente resumindo uma longa reflexão de mais de seis anos sobre infância e tecnologia em tópicos sucintos. Existem muitas vertentes que podem ser contempladas nesse cenário. Mas hoje consigo me afastar do julgamento individual contra a família que alimenta a criança atrás da Peppa - ainda que eu continue achando isso um absurdo. Consigo encontrar onde estão os pontos inegociáveis dessa relação aqui na minha casa, como para mim é o caso do celular ou dos conteúdos machistas e violentos. E consigo acompanhar o desenvolvimento de meus filhos no mundo em que vivem, e não naquele que eu acho que seria melhor para eles. E claro, sigo sonhando com DVDs no banco de trás do carro. Mas só para os casos de acidentes na pista.

PS: Não posso deixar de registrar meu desprezo total por penico com tablet, mas o texto era sobre crianças e tecnologias e não sobre as fronteiras da estupidez humana. ;)