quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Infância e Tecnologia: resistir numa bolha ou sucumbir?

* Por Courtnay Guimaraes Jr.

Ao receber o convite para escrever sobre tecnologia e crianças (Das pequeninas às maiores), bateu uma esquizofrenia existencial. Desde que me entendo por gente, tecnologia sempre fez parte da minha vida (e olha que lá se vão 46 solstícios de vida). Mas antes, ela vinha disfarçada de cotidiano e não me impedia de viver um universo físico mais amplo do que se dispõem as crianças, em especial as habitantes das grandes cidades… Como cientista e tecnólogo (trabalho com ciência da computação há 31 anos), tendo a ser extremamente pro-tecnologias. Como pai de três infantes de menos de 4 anos, reflexões mais profundas me atormentam… O debate é amplo, mas geralmente falamos de tecnologia num contexto restrito às telinhas e telonas (Com ou sem joysticks) da tão propalada sociedade digital. Mas não se limita apenas a este contexto. Dentre devaneios, conversas intensas de pais, filosofanças vãs e discussões apaixonadas e acaloradas, enfrentamos dilemas e escolhas sobre umas tantas, como por exemplo: 

Imagem: Freepik
• Remédios são tecnologias. Assunto mais que polêmico atualmente, mas a alopatia é a parte mais aguda dessa crise tecnológica. Hipermedicação já deveria ser considerada até epidemia, uma vez que as superbactérias estão ai para provar o efeito nefasto. Mas e aquela dipirona mágica que resolve a febre insistente? Claro, há alternativas. Mas vale a pena? Ou porque não valeria? Debate amplo… • Vacinas são tecnologias. Correntes pró, correntes contra, vão se digladiando diariamente (de preferência apenas em meios virtuais). Um debate importante mercê um espaço mais amplo do que existe atualmente, afinal, qualquer inovação que não passou de um século ainda não tem seus efeitos completamente mapeados. Neste aspecto, meu lado tecnólogo e cientista pesa muito mais, portanto, sou pró-vacinas neste aspecto. 

• Comida industrializada é tecnologia. Para alimentar os bilhões de seres humanos que pululam nosso limitado planeta, foi desenvolvida uma gigantesca massa de conhecimento para industrializar e transformar alimentos para todos. Com benefícios e malefícios (estes últimos ainda desconhecidos), sabemos que hora ou outra cedemos a um “industrializado”. A vida moderna quase que impõe praticidade e é quase impossível fugir desta tecnologia, principalmente nos países de primeiro mundo. Mas aqui venceu o neto de cacauicultores, criado quase que no mato: Comida só feita na hora, de preferência com alimentos organicamente cultivados, ao máximo possível (item do próximo tópico). 

• Agroindústria alimentícia é tecnologia. Meus primeiros anos de trabalho com tecnologia foram justamente na agroindústria. De melhoramento de rebanhos lá nos anos 80, a gestão financeira de fazendas, sempre acompanhei de perto esta evolução. Perdi a inocência neste sentido muito cedo. De sementes transgênicas a todo tipo de fertilizante, de pesticidas de efeitos completamente desconhecidos a rações com todo tipo de enriquecimento químico, há de tudo. Técnicas de clonagem (animal e vegetal) são a única maneira de se produzir abundante e economicamente a quantidade necessária de alimentos. Peixes confinados, a base de rações, complementam a lista. Mas, impossível esquecer a moderna tecnologia de pesca, devastando espécies. Novamente, o menino criado no mato fala mais forte. Ao máximo, evitamos, mas confesso que 100% da carne bovina, ovina, suína e aves, são industriais. Peixes ainda conseguimos alguma produção ribeirinha, mas ou vêm de pesca industrial, ou de cativeiro (camarões, salmão, etc). Aqui, somos reféns humanos das limitações que nós mesmos produzimos para sobreviver em nossas enormes concentrações. 

• Transporte é tecnologia. Como vivo em São Paulo, impossível viver sem carro. Mas já incutimos nas crianças a inviabilidade de andar em coisas anteriormente cotidianas. Andar de ônibus foi uma aventura (antes só vista nos desenhos da BBC). Metrô, contados nos dedos de um dos gêmeos. 99% do tempo, caro, movido a petróleo. Num conjunto de outros, que geram a inversão térmica, o clima seco e as famigeradas bronquites de inverno. Novamente, me sinto vítima. Adoraria umas pedaladas com as crias, mas, mais que segurança (atropelamento mesmo), tudo é distante aqui nesta cidade. 

• Controles de ambiente são tecnologia. Estou falando de ar-condicionado, humidificadores, aquecedores e afins. Quase não questionamos ligar nossos aparelhos e “harmonizar” o ambiente. Mas a que custo? Será que a longo prazo seremos seres biologicamente melhores, vivendo sempre a 24º e 70% de humidade? Isso cria resistência e adaptabilidade nos pequenos? Por força de saúde, não abrimos mão do humidificador. Do resto, roupas quentes no inverno e crianças peladas no verão, vamos tocando. 

• E o que dizer de mídia? A incrível e manipuladora tecnologia do marketing e da propaganda nos invadem totalmente a inconsciência, coletiva e individual, propalando consumo amplo e irrestrito, se possível, no mais imediato impulso. Veja, clique, pague, mais uma inutilidade é sua. Só que com os pequenos, a proporção é cruel. Quem não ouviu 10398123030123813 vezes a famosa “Lérigou”, não imagina como é cruel uma criança de 3 anos assistir uma peça de aliciamento mental e nunca mais esquecer daquilo, para em seguida ser enxurrada de merchandising. Mas há os lados positivos (ou males menos danosos), como as séries de desenho educativo (Turma Umizoomi é o primeiro exemplo que me vem à mente). E ai? Resistir numa bolha, sucumbir? 

• Fechando uma longa lista de exemplos, a medicina humana é tecnologia pura atualmente, mas existem 3 grandes capítulos neste tema, que valem ser citados. o Médicos x Médicos x Médicos x Médicos: Médicos “tecnocratas”, se é que podemos usar uma expressão tão pesada, nos impressionam com centenas de especializações, cursos, workshops e técnicas revolucionárias de benefícios garantidos. Remédios de última geração, intervenções cirúrgicas à lazer e por robôs, tudo para garantir cura quase imediata e sequelas quase zero. Mas, humanidade, tendendo a zero idem. Numa outra linha de pensamento, médicos mais “humanizados” (mais uma expressão estranhíssima na minha opinião) usam de menos pirotecnia e mais de acolhimento, conforto, viram amigos íntimos, mas deixam áreas cinzentas aos cuidados da natureza. Para pais principiantes, estes dois extremos apavoram igualmente. Já aos naturistas, homeopatas, tratamentos milenares e alternativos (acupuntura e afins), abrem um outro leque imenso de possibilidades, a maioria sem comprovação científica (e mais debates religiosos acirrados), mas com estatísticas de cura crescentes. Finalmente, avôs e avós de fazenda, cheios de ervas, chás e outras ditas “curandeirices” acharam espaço em uma diminuta mas seleta turma de médicos naturistas e integralistas. Muitas opções, divergências, conflitos de interesse e gigantescas industrias a se beneficiar de cada uma das linhas. Resta a nós, cuidadores, escolher o caminho de maior conforto ao casal. 

Aqui, temos muitos conflitos, minha alma de cientista grita e esperneia pelas provas práticas da medicina alopática (afinal, a mãe natureza é apenas justa e cruel, mantendo apenas os mais aptos vivos e foi para isso que construímos a ciência, para sobreviver como espécie e contra as limitações a nós impostas), mas as vivências mais naturais e as experiências com a medicina humanizada trouxeram outros alentos. Ponto muito em aberto… o Hospitais x tratamentos naturais domésticos: Qualquer ida ao pronto socorro demonstra a aguda crise que a praticidade da vida urbana nos impõe. Filho doente é empecilho, buscamos a cura rápida, no pronto socorro mais próximo, via intravenosa de preferência. Diagnósticos de amplo espectro (é uma virose) direcionam quase que imediatamente a uma profilaxia idem. Antibióticos, anti-inflamatórios e lá se foi uma chance de ouro de se criar um pouco mais de imunidade nos novos humanos. 

Mas quem tem disponibilidade para ficar 6, 8 horas acompanhando o/os filhos, vendo evolução / involução de febres, tratando com métodos caseiros ou não? Hoje, tenho a sorte de a minha esposa olhar para uma das crianças e saber com grande certeza se é hora de ir ao hospital ou não. De resto, crises mais graves vêm sido tratadas em casa. Afinal, ledo engano e ingenuidade de quem acha que ambiente hospitalar tem baixo risco… Ao contrário. o Reprodução: Tivemos filhos por inseminação e as amplitudes de tratamento (de escolha do sexo ao infinito possível para garantir o nascimento dos bebes perfeitos), nos traz uma imensa lista de debates éticos. Em breve, numa clínica perto de você, clonagem de órgãos. Você deixaria seu filho morrer podendo clonar um órgão dele? A lista destas e de outras tecnologias já imperceptíveis, mas não menos polêmicas, é quase infindável, mas parece que ultimamente a discussão tem muito mais foco atual em telas, aparelhos e seus aplicativos viciantes. 

Mas antes de chegar às crianças em efetivo, já chegaram em poluição sócio-ambiental. Como rejeitar algo a uma criança que vê, ao vivo e a cores, em quase todos os lugares, adultos (e muitas crianças) consumindo telas a todo instante? Limitamos em casa, buscamos escolas limitantes, mas em qualquer reunião humana, celulares já são onipresentes (smarwatches começam a ser idem). O singelo ping do whatsup em aparelhos android já passa a ser parte da cotidiana poluição sonora assim como buzinas e roncos de motor… O que dizer aos pequenos? Em breve, geladeiras, fogões, aspiradores e robôs domésticos passarão a pulular nossas casas. E ai? Pra onde fugir? Em resumo, dos derivados de petróleo (tecnologia petroquímica) aos avanços da biotecnologia, tecnologias, seus avanços, seus debates éticos e suas consequências infindáveis nos permeiam e intensificarão nossa realidade próxima (e das crianças, em qualquer idade). Responsabilidade nossa, adultos em teoria conscientes, dosar e equilibrar os benefícios frente às consequências nefastas. Arregacem as mangas, sejamos ativos e conscientes, afinal, temos filhos! 

* Courtnay Guimaraes Jr. Antes, executivo com 30 anos de mercado, economista especializado em mercado de capitais, diretor de tecnologias da informação para mercado financeiro na Hewlett Packard Enterprise e professor de gestão estratégica da inovação na Business School São Paulo.