quarta-feira, 19 de abril de 2017

Minha filha apanha na escola!

Pretendo começar hoje uma reflexão a partir do relato de uma mãe sobre as relações de sua filha na escola e com a escola. a difícil arte de educar filhes !

"Fulana apanhava na escola. Da primeira vez, eu pedi que falasse com a professora. Eu nunca ensinei filha minha a bater, sempre achei muito errado responder com violência. Da segunda vez que bateram na fulana, eu mesma fui falar com a professora. Ela disse que fulana é carinhosa e doce, e colocou nos pais do menino que bate a culpa por não dar limites. Fico me perguntando qual é o limite que os pais tem que dar para as crianças que batem, que não passe por alguma violência - mesmo que não seja física, a qual eu condeno. A professora escreveu um bilhete na agenda e conversou com o garoto sobre o valor das amizades e como devemos ser amigos de todos na escola, dando por cumprida sua tarefa, 'fez sua parte'. Da terceira vez que bateram na fulana eu olhei bem fundo nos olhos dela e disse: revide."



Crescer é de fato um desafio para todo mundo que se dispõe a pensar no assunto.

Não há teoria que sustente a prática cotidiana de criar, amar e educar os filhos, de modo que quem não vê nessa trilogia um dos maiores desafios da existência humana pode ter encontrado um lugar de conforto daqueles de onde nunca se alcança o crescimento.

Na prática, muitas vezes crescer está em lidar com o confronto, e não com o conforto.

Todo mundo leu nos livros e escutou nos discursos humanizantes que não devemos jamais ensinar a criança a revidar violência com violência. "Se alguém machucar você na escola, diga que não gostou e procure a professora!" - a gente repetiu ad eternum essa máxima, sempre torcendo para que o machucado fosse suportável, a professora fosse justa, a escola fosse equilibrada com um número correto de adultos (bem formados) por crianças e os pais do agressor fossem como a gente, celebrassem os nossos valores. Ou seja, repetimos a máxima do ideal, dos lugares de conforto, quando dia após dia, o crescimento nos apresenta lugares de confronto.

É a vida desafiando os livros!

É o real desafiando o ideal!

É o possível desafiando o melhor!

Tenho visto muitos relatos de um grupo de mães e pais lidando com essas questões: como se as teorias das boas relações humanas passassem por ideais romantizados de paz, onde os coletivos de crianças pudessem crescer sem nenhum conflito, verbal ou físico. Como se, na hipótese do conflito estabelecido, chamar a professora fosse a solução definitiva (e em uma única vez) para todos problemas. Ainda como se, o adulto que media essas questões, esteja ele na escola, na festa de aniversário ou em casa, fosse sempre algum exemplo a ser seguido, e tivesse naquele momento todos os recursos necessários para lidar com os conflitos que se apresentam.

E principalmente como se tivéssemos sempre a melhor solução para o conflito, nem sequer conhecendo que desejos e pensamentos povoam o universo desta criança, ora vitima, ora vilã !



O mais difícil para mim é dar voz a essa criança. Nesse relato dessa mãe fica faltando a criança. 

Como ela viveu a agressão, como foi procurar a professora e o que lhe foi respondido, qual seu desejo de reação diante desta agressão. Ela não deveria ter sido ouvida? Ação e reação, agressor e vitima não são proposições parciais desta situação? Para toda situação de violência física há uma unica resposta possível?

"Fulana voltou para casa e disse que bateu de volta no menino. Peguei a agenda e lá estava o bilhete, dessa vez condenando a ela por atitude agressiva e a mim 'por falta de limite'. A professora pedia que eu conversasse com ela sobre não agredir o colega, e me passou um sermão escrito sobre como a violência não é a solução. Acho engraçado uma pessoa que trabalha com educação de crianças negar a violência que existe nas relações humanas, do alto do entendimento de que bilhetes na agenda e culpabilização dos pais resolveriam esse 'problema'."

Do mesmo modo que nos aproximamos de nossa humanidade nas atitudes desumanas e temos nelas a oportunidade de crescimento, superação, evolução, poderíamos enxergar nos conflitos infantis um caminho para sua própria solução? Quando deveríamos intervir ?

Será que vale teorizar sobre a não violência para uma criança que está sendo agredida? Qual é a resposta que se espera de uma criança que foi agredida? Qual o acolhimento que se espera dos adultos em torno de uma criança que agride? O que fazer com essa horda de pais que é responsabilizada por absolutamente tudo que se passa na vida dos filhos, quando têm (com sorte) duas ou três horas ao dia de convivência com eles?

Qual a responsabilidade de gerir os conflitos vividos na escola pela própria escola?



Já escutei familiares sustentando orgulhosamente a antítese da máxima humanizante - "eu ensino a mirar no nariz e socar com força". E já escutei pais e mães que, em nome da teoria, isentam-se também, como um bilhete na agenda e as frases prontas sobre amor e amizade, de construir com a criança e os demais envolvidos formas vividas, e não teorizadas, sobre viver no conflito.

Nem uma coisa nem outra me parece sadia. Ambas atitudes isentam os adultos de efetivamente mediar. De seu trabalho como pais, mães e educadores. Mas podemos mediar quando definimos agressor e vitima? 

Ensinar a revidar não precisa significar ensinar a bater de volta. Pode significar não abrir mão do seu brinquedo, sem com isso virar pancadaria, por exemplo. Ensinar a revidar não precisa ser um ato condenável. É preciso munir as crianças, e quanto mais vão saindo da primeira infância, maior parece ser essa necessidade, de recursos para que sim, se defendam. Quais os espaços de crescimento que vamos criar?

Sabemos reconhecer em nós mesmos esta dificuldade? Um texto cheio de perguntas para uma situação extremamente difícil !

"E então ela voltou para casa contando de novo que eles brigaram na escola. Na saída do dia seguinte me plantei no portão e pedi que me mostrasse quem era a criança que a estava agredindo. Uma mãe tem seus limites. Com fulana do meu lado, abaixei e olhei firme para os dois: eu sou mãe da Fulana, tudo bem? Ela e eu estamos muito tristes porque vocês andam brigando na escola. Eu estou te pedindo que não encoste mais nela. Vocês não precisam ser amigos. Vocês não tem obrigação nenhuma de brincar juntos. Vocês podem ficar a vida toda cada um brincando no seu canto, não precisa nem dar bom dia, caso vocês não gostem um do outro. Está liberado não gostar do outro. Mas vocês dois NÃO PODEM (e nessa hora eu fui bastante firme) se bater. Tratem-se com respeito, e se ela fizer algo que você não goste, pode falar comigo também. Eu não quero que você bata na minha filha. Estamos combinados?" 

Será que esta mãe conseguiu resolver este conflito definindo que ninguém precisa gostar de ninguém, mas podem viver/coexistir nesse espaço?

Acho pouco provável e, pior, imagino o tanto de outros conflitos que vão nascer a partir desta atitude. Imagino a escola a desqualificando, a família desta outra criança exigindo providências pelo absurdo da atitude desta mãe.

Quando se trata de intervenção de adultos, parece que a confusão não tem fim. Particularmente não acho justo que essa mãe se dê ao direito de ter uma conversa de adulto com criança sem que seja sua filha, ou que a outra mãe ou pai estivessem presentes.

Mas gostei de nomear aqui o imenso universo contido numa rixa de escola e seus desdobramentos. E que soluções mágicas e estereotipadas sobre solução de conflitos negam a inteligência e complexidade humana. 

A confusão começa em negar o conflito e imaginar um mundo no conforto da falta de conflito. Como se este mundo fosse vivo. A falta de conflitos denuncia um mundo morto e vazio das inúmeras possibilidades que as interações humanas trazem em si. 

Tentando desfazer certos e errados muito fáceis. Deixando de acreditar que onde há respeito pela singularidade não cabem respostas prontas. Não cabe o modelo vivo! Mas será que a tal conversa resolveu o problema?