segunda-feira, 3 de abril de 2017

Cultura e dor

"Cultura são artes elevadas à um conjunto de crenças."
Thomas Wolfe

Culturas e tradições e ciências!

É fácil falar das nossas, gostar daquelas que praticamos, defender aquilo que fizemos com nossos filhos ou o que foi feito conosco. Ou mesmo negá-las, já que em relação aos cuidados com filhos cada geração irá ser influenciada por técnicos da área de saúde que definem o que é cientificamente correto. Afinal nada mais elevado a um conjunto de crenças que a própria ciência!

Caso tivessem contado para uma mãe urbana na cidade de São Paulo na década de 80 que a placenta deve ser enterrada embaixo da roseira, provavelmente ela acharia esse costume muito esquisito. Afinal, não está na sua coleção de riquezas. Esta mulher é construída num ideal de que ela não é bicho e muito menos índia e que portanto, parir naturalmente e amamentar não fazem parte de seu repertório de vida. Sua maior riqueza viria da artificialidade.

Sim, você está vendo um sapato de salto para bebês. Foto Pee Wee Pumps.

Tudo feito pela industria é melhor !
O que ouso chamar da Cultura do Plástico.

Da mesma forma nos espantam as andinas quando colocam o bebê no aguayo e com força e segurança lançam a criança para a vida que existe no infinito atrás das costas da mãe. Uma experiência sensorial indescritível que essa mulher oferece ao seu bebê. Mas em nossa cultura de "cuidado com o pescoço" parece descabido fazer o bebê voar.

Foto Unbolivable


Lá na Nigéria o primeiro banho do bebê quem dá é a avó. É um gesto que representa que a comunidade de mulheres está apoiando a mãe nos cuidados com o recém nascido. "É preciso uma aldeia para cuidar de uma criança", eles dizem. Muita gente concorda, pouca gente pratica.

Fica difícil de frente da poesia do primeiro banho nigeriano enfrentar o fato de que muitos bebês na contemporaneidade são esfregados com brutalidade pela enfermeira do berçário, que precisa correr logo para preencher uma planilha (lembrando que preencher a planilha fica quase mais importante que o banho) e dar conta de tantos outros bebês e tantos outros relatórios.

Foto: How To Bathe a Newborn

Faz tempo que algumas coisas que acontecem com nossos bebês por aqui deixaram de ser tradição. Jamais seriam arte, apesar de ganhar ares de cultura. Não respeitam conjunto de crenças nenhum, se não a ordem de produção do modelo morto que nos rege. Em tom apocalíptico: o dinheiro (... não consegui resistir) 

Mas falando em dinheiro e nas coisas que ele compra, fora do Brasil as pessoas estranham as lembrancinhas de nascimento. "Como pode a mãe ter que presentear um visitante? Quem merece presentes é ela". Uma estranheza que faz algum sentido.

E exatamente na busca do sentido, descobri que no Paquistão e outros países Islâmicos a nomeação do bebê é um ritual que deve acontecer no seu 7º, 14º ou 21º dia pós nascimento, onde a sua cabecinha é raspada e um animal é oferecido em sacrifício em seu nome.

Foto: Beritawajo

Quando fala "sacrifício" já dá uma estranheza. "Pobre do animal, precisa matar?". Nada à ver com os bebês, mas há quem reclame das galinhas vendidas para sacrifício em rituais religiosos exatamente enquanto mastiga o filé de frango. Cultura tem dessas coisas, quando não é a nossa, dá uma estranheza. Chega a dar aversão!

As índias brasileiras pintam seus bebes de preto e vermelho. Querem vitalizar e afastar os maus espíritos , num ritual de proteção espiritual aos bebês. Nas populações urbanas do Brasil e do mundo, as mulheres vacinam seus filhos. A vacina ganha o poder mágico de proteger os bebês, já que no dia seguinte a vacina uma criança pode andar de metrô ou frequentar o shopping sem medo.

Na esfera das crenças, pode ser mesmo dolorido. Por que precisamos acreditar que não dói?
A circuncisão, dói.
Furar a orelha do bebê, dói.
A mutilação genital das meninas, dói.
Uma faixa apertada sobre a moleira, dói.
Vacinar, dói.

Essa foto é do AliExpress, onde você compra 40 laços por 8 dólares!!!


"Mas colocar o laço com aquela colinha especial não dói, é só enfeite, é carinho, é cultura, é para diferenciá-las dos meninos!Afinal todos estavam me perguntando o nome dele. Não dava para ver que era menina!"

Há dores físicas e dores na alma. Eu prefiro voltar à Thomas na busca do sentido: esse laçarote é arte elevada à um conjunto de crenças? Os furos nas orelhas transmitem amor de geração para geração? As festas na maternidade são vivências de poesia? Ou pode tudo isso - disfarçado de cultura - ser só mesmo pela dor? Pais preferem fazer a circuncisão logo para já resolverem este assunto. Mas e a dor (e o sentido de tudo isso) como ficam? Uma das coisas da vida, as dores sem sentido?

Fica aqui minha reflexão sobre a nossa Cultura do Plástico (fazendo um trocadilho sobre as cirurgias plásticas, e as dores sem sentido hehehe). Estamos tão envolvidos e acostumados com esse olhar sobre a vida e sobre a infância que pode ser nojento ou cruel realizar um sacrifício animal em nome de uma criança que nasce e, ao mesmo tempo, pode parecer natural usar cola no cabelo de bebês.

Ou ainda procedimentos dolorosos estéticos ou que envolvam crenças pseudo-cientificas.

"Cultura são artes elevadas a um conjunto de crenças" - busque as suas artes, seus sentidos, suas crenças. Se não, é só dor mesmo.