quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Amamentação: a última fronteira do corpo mulher


**Por Anne Rammi** 

A minha contribuição para a #Smam2016 é uma reflexão. 
Amamentação não é índice de qualidade de maternagem. Nem tampouco está na categoria "alimentação" - muito embora tenha também essa função e ninguém vá questionar a superioridade nutricional do leite materno. 

Amamentação não é um exercício de amor, e não se trata de abnegação e generosidade, ainda que seja uma experiência única de aprendizado sobre exatamente isso: entrega. E quem amamenta sabe o tanto de amor que pode rolar ali. É realmente avassalador, mas amamentação não tem nada à ver com isso. Não mesmo. 

Acho que quando escolhemos focar nesses aspectos adjacentes, criamos uma cortina de fumaça que esconde um cenário macro, dolorido e por isso ignorado: amamentação hoje se trata do resgate do poder que as mulheres têm (ou deveriam ter) sobre seus próprios corpos. Amamentação é uma pauta tão feminista que até as feministas tem dificuldade de enxergar seu potencial revolucionário de emancipação do corpo. 

Corpo. Corpo. Corpo.





Tudo o que diz respeito ao corpo da mulher - e a quantidade de violência patriarcal que sofre desde que nasce - precisa ser enxergado como o contexto para as vivências da maternidade. Se não, estamos fadados aos avanços a passos de tartaruga, regulados por aquilo que o mercado deixa. Haja visto o tanto que se fala em "benefícios do leite materno" até nas campanhas de marketing dos produtos substitutos a ele. Se a indústria de substitutos do leite materno ainda não faliu, estamos fazendo isso errado, nós as lactivistas. 

Minha contribuição para a #Smam2016 é essa.
Olhar para o desagradável. Olhar por baixo do tapete para onde se varrem as sujeiras. Sexo, prazer, gestação, parto, e tudo o que cabe entre uma coisa e outra, tem relação indissociável com a última fronteira do corpo de mulher: amamentar. 

Amamentação é a última fronteira dos corpos mulheres. Dos corpos que a elas nunca pertenceram. Faz sentido porque é difícil? 

Do brinquinho dolorido e faixa na cabeça para adornar bebês meninas, passando por toda a repressão sexual da infância. Perseguição por modelos inatingíveis de beleza e rituais torturantes para encaixe no padrão. Não vamos esquecer que muitas, se não todas nós, sofremos abusos sexuais. E algum tipo de violência maior ou menor, dessa ordem. Nosso trabalho vale menos. Nosso corpo, vale nada, e querem até legalizar (com carteira assinada) a prostituição. 

Masturbação, orgasmos, sexo, prazer, não são nem mencionados como parte natural da vida de mulher nenhuma. E não há direito de escolha sobre gravidez, uma vez que se gestante, está sacralizado aquele corpo, ainda que tenha vindo do prazer de alguém, do corpo de alguém, do sexo de alguém. 



Estamos envenenadas desde a primeira menarca (que ai, como odiamos) por anticoncepcionais que nunca despertaram a preocupação de ninguém. É natural que nos cortem a barriga e interrompam nossas gestações para tirar um bebê de lá de dentro: que sofre ameaça, do próprio corpo que o abriga. Placenta ruim, quadril ruim, dilatação ruim. O corpo que não presta, se ousar trabalhar em parto, escapa do corte na barriga mas leva no períneo, e uns sopapos talvez. E depois costuram tudo, para não estragar o parquinho de alguém.

Amamentação não é sobre amor, nem sobre escolha. Porque é sobre lidar com essa bagagem toda aí, carregada no corpo. Porque é sobre lidar com esse corpo, que agora precisa ser habitat de outro corpo. O seio é habitat do bebê sim. Tem problema se não amamentar, tem problema SIM. Não que signifique que aquela mãe não é boa - afinal amamentação não é índice de qualidade de maternagem, já passamos dessa fase. Mas significa, se houve o desejo de amamentar e ele não se concretizou, que aqueles corpos sucumbiram em alguma instância à violência que sofreram. 

Os corpos não esquecem. 

Amamentação é isso, um acontecimento que não se separa de todas as vivências daquele corpo mulher. Persistir, amamentar, jorrar o fluido do corpo que alimenta é resistência feminina. É o choro transmutador de lágrimas do corpo, em leite. 


Imagens das obras do artista Sidney Amaral 

Em tempo: desejo de não amamentar, escolha informada verdadeira por não amamentar, assim como por não gerar, não gestar ou não parir é igualmente, um exercício de poder que a mulher faz sobre seu corpo e somos todos à favor disso. Mas não vamos achar que mulheres que - frente à toda violência que carregaram em seus corpos desde que nasceram, às investidas das indústrias, incapacidade dos profissionais, ausência de estrutura social e ameaças à saúde do filho - não amamentaram seus filhos o fizeram por escolha. 

Isso não é escolha tá bom? Tá bom.