quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Classismo e comida de verdade

Todo mundo que quiser participar de um debate precisa ter a habilidade de transitar entre verdades individuais e verdades coletivas. Entre a nossa casa e o mundo. E em cima disso, reconhecer que é possível que várias verdades caibam em um só lugar. Individualmente vivemos embates a cerca de possíveis verdades. Imaginem quantas possibilidades surgem num debate.

A alimentação é um tema sensível dentro da mater-paternidade contemporâneas . Desde que a Bela Gil deu voz a uma reflexão antiga que trata da importância da comida de verdade, estamos vendo uma escalada desse assunto e com ele uma suposta polêmica: comer bem é um privilégio? Comida de verdade é classista? Inúmeros famosos pela arte de cozinhar ou simplesmente por serem famosos povoam os canais de televisão divulgando alguma marca verdadeiramente melhor e mais saudável. O que seria a comida de verdade? Ela é definida pelo poder de compra e portanto pela classe social do consumidor ?

Oras mas é claro que sim. Vamos exercer nossa habilidade de viajar pela amplitude e compreender que talvez na nossa mesa não seja lá um grande desafio substituir a feijoada em lata pelo feijão jalo banhado por 24h e cozido com sal do himalaia. Mas vivemos em um mundo onde pessoas morrem de fome, correto? Comer, em si é um privilégio. Comer bem então... 


No entanto essa reflexão não precisa ser usada para atacar qualquer um que tenha como objetivo ou vontade a alimentação sadia. Dar um novo significado ao prazer de comer repensando a cultura alimentar da própria família, principalmente quando nascem os filhos pode ser muito rico.

A quem serve problematizar a prática da comida de verdade a ponto de "validar" a comida enlatada na mesa de pessoas que, como nós, teriam toda a possibilidade de fazer uma escolha melhor apenas baseado em 1) informação 2) vontade? A quem interessa apresentar uma profissional da TV como dona de casa preocupada em descongelar a comida pre-preparada mais adequada como se ela fosse consumidora deste tipo de alimento?

É certo de que o efeito colateral de criticar a alimentação infantil baseada na chia orgânica (que convenhamos, merece sim alguma crítica) pode ser favorecer o outro lado do pêndulo. E talvez seja essa a tônica desse debate: como refletir e melhorar nosso conhecimento individual sobre isso de modo a não prejudicar conquistas da sociedade? Nossa casa, nosso mundo? Compreendemos que o que comemos e como comemos é o aspecto cultural que mais nos define ?

A indústria de alimentos ultra processados vem perdendo espaço para essa ampliação de consciência e anda sedenta exatamente por esse tipo de embate: é muito interessante para a indústria que estejamos com raiva da colega do lado porque ela dá conta, quer, escolhe, ama, pode, prefere uma comida toda trabalhada na saúde enquanto por nossas próprias condições e peculiaridades andamos escolhendo "o que dá". 

Trago um exemplo do universo vegano. A acusação de que o Veganismo é elitista - porque supostamente substitui alimentos de origem animal por alimentos processados ou mais raros, e portanto caros, como os cogumelos sei-lá-o-que ou o hambúrguer de soja - é bastante plausível. De fato, o acesso à produtos veganos é de um privilégio sem fim, em um mundo (novamente, para a gente não se acostumar com esse absurdo) em que crianças morrem de fome. No mesmo tempo essa crítica é equivocada que só ela, e parte de um lugar de algum desconhecimento da prática. Primeiro porque a vida vegana é extremamente acessível e é a falta de informação que faz as pessoas acreditarem que precisarão trocar a linguiça de porco pela linguiça de soja. Não é exatamente essa a proposta. Além disso, no grande espectro, o Veganismo é um fator de economia sem precedentes. Porque invoca uma utilização absolutamente sustentável da natureza. Portanto uma crítica rápida como "Veganismo é classista" acerta em cheio em um panorama e é completamente errada em outro. 

Duas verdades no mesmo lugar.
Nao podemos esquecer que os altos preços praticados quando se retira um elemento como lactose, glúten, ou mesmo a carne levam a uma confirmação de que é para poucos comer sem isso ou aquilo.

Concluindo: alimentação saudável é classista sim. Precisamos tomar um cuidado enorme para que não se aumente essa distância entre aquele que come quando tem e aquele que pode optar por não comer. Mas ainda assim é de suma importância que comer bem esteja na pauta e que as pessoas que levam essas reflexões para frente possam atuar com liberdade, possibilizando informação. 

O contrário disso, não nos favorece, nem em casa nem no mundo.