segunda-feira, 2 de maio de 2016

"Eu chorei amamentando"

Minha mãe sempre contou, com ares dramáticos, como eu mastigava seu peito ao invés de sugar, fazendo seus mamilos sangrarem. Desmamada, diz ela, recusei mamadeira e chupeta. Tomo pingado no copinho desde que aprendi a pegar e levar à boca. “Você era a sensação na padaria”. 

Sempre vi graça nessa história. Até engravidar. 

O Tomé nasceu no hospital em um lindo parto humanizado. Mas ali, na sala de parto, ele não mamou. Tentou, chegou a pegar o peito, mas não parava de chorar. Eu até fiz piada: pode reclamamar, filho. Reclamame, temos todo o tempo do mundo para você. Mas não rolou. No primeiro dia inteiro ele não mamou. À noite, ele vomitou mecônio e a enfermeira veio me acalmar. “Ele tem uma grande reserva de energia, fique tranquila, amanhã vai ficar tudo bem”. 

No dia seguinte veio a Andrea Santos, consultora de amamentação, fazer visita. Ela viu a pega dele, ensinou umas posições, ele mamou bastante e ficamos todos felizes. Foi um dia de mamação, conexão e emoção. Na manhã seguinte, eu estava deitada, com o Tomé estatelado em cima de mim, meio mamando meio dormindo, quando uma maldita enfermeira entrou no quarto e saiu me dando o maior sabão: "Quanto tempo faz que ele tá assim? Você não foi o-rien-ta-da? Seu filho tá te fazendo de chupeta! São 20 minutos de cada lado e depois ber-ço."

Eu estava em outro planeta e aquilo me deixou zonza. Não entendi nada, não entendi que poderia estar fazendo alguma coisa errada. Fiquei amuada. Ah se fosse hoje... eu teria tocado ela do quarto na porrada. Mas naquele momento eu estava meio desfeita, meio dissolvida, sei lá. Voltamos pra casa e um dia depois o leite desceu. Era uma sexta-feira e a Andrea veio em casa ver como estava as coisas. Estava tudo bem, Tomé mamando direito, leite à vonts, sem empedrar, uma beleza. O Tomé se revelou um mamão. Mamava por muito tempo e várias vezes, intervalos curtos, uma intensidade enfim. E as palavras da enfermeira ficaram ressoando em algum canto da minha cabeça. 

Meu filho estaria me usando? 

Fonte da Imagem: Etsy


Sorte que o Cacá ligou e perguntou como estávamos. Conversamos um monte, contei da enfermeira, ele falou falou, falou e eu achei que tinha feito as pazes com a decisão de amamentar em livre demanda. Mas meu peito começou a rachar. E tudo começou a ficar muito penoso. Eu pensava na cena que a enfermeira estragou, o Tomé estatelado em mim, eu totalmente relaxada, e não conseguia imaginar como aquilo tinha acontecido. Agora, amamentar era uma coisa que fazia com que meu corpo ficasse tenso, todo retorcido. Era algo que eu tentava encerrar logo. “Vai, acho que ele terminou”, e tirava o menino do peito. E ele reclamava. E eu voltava ele pro peito um pouco de má vontade, um pouco com pena, me sentindo um pouco culpada e um pouco usada. Tudo muito confuso. 

Na segunda-feira, pela primeira vez eu chorei amamentando. Então fui ver a Andrea. Ela olhou a mamada e chegou à conclusão que a pega estava errada. O meu temor se concretizou: assim como eu-bebê, o Tomé estava mascando meu mamilo. (Minha mãe, que no geral é ótima, super respeitosa e entendeu bem seu papel e vó e tal, mandou uma puta bola fora quando eu contei pra ela. Disse: “Háááá, puxou a mãe. Viu como é?”. Eu senti como se o Tomé estivesse servindo para ela se vingar da dor que eu causei nela. Fiquei puta, xinguei ela e falei, com o claro intuito de magoar, que ela não tinha me amamentado porque não tinha informação e não insistiu. Estávamos as duas erradas, é claro. Normal, acontece.) 

Enfim, a Andrea ensinou um jeito de ensiná-lo a mamar: ele ficava de cavalinho e eu empurrava o queixo dele para trás em todas as mamadas. Foi assim durante uma semana. A coisa foi se acertando, veio a consulta de um mês e ele tinha perdido peso para chuchu. O Cacá acalmou a gente e disse: deixa ele pendurado no seu peito. Ele deve estar querendo compensar os dias em que você regulou as mamadas por conta da dor. E assim foi, o bichinho passou a ficar pendurado em mim. “Alimentação permanente”, meu marido dizia, achando graça e fazendo carinho. Eu aprendi (ou melhor, achava que tinha aprendido) a fazer ouvido mouco para as “perguntas-palpites”, aquelas que disfarçam um julgamento. 

“Mas por que ele não mama normal? Por que fica sentado? Por que ele mama tanto? Você precisa regular os horários dele, se não ele vai tomar conta da sua vida! Seu peito não machuca? Mamando desse jeito, ele vai acabar esfolando seu mamilo.” 

Segunda-feira

A lua-de-leite durou uma semana. Na segunda-feira eu acordei com mastite. Com a queda na resistência, a candidíase mamária, que sempre esteve por ali, mas moderada, atacou com força total. No meio da manhã, eu explodi. Chorei que nem bebê, gritando. O meu marido ligou pro consultório do Cacá e protagonizou uma das conversas que viraram piada aqui em casa. 

- A Helô está chorando muito, não parou de chorar a manhã inteira, queria ver se a gente conseguia um encaixe. (silêncio) 
- Hãn? (silêncio) 
- Não, Helô é a mãe. 

A dor era tanta que eu não cogitava dar o peito pro Tomé. Mas era tanta que eu não sentia medo de que ela ficasse mais intensa. Então me fechei no quarto com um copo esterilizado e ordenhei os dois peitos, entreguei o copo pro meu marido e pedi que ele desse o leite pro Tomé. Foi outro marco. Ele ficou emocionado de poder alimentar o filho, ou apaimentar como eu prefiro. Chamou para a si a responsabilidade de dar leite pro Tomé sempre que eu estivesse cansada ou dolorida, e isso foi fundamental nos dias que seguiram. 

Fomos ao consultório do Cacá e ele e a Andrea confirmaram que era mastite, deram remédios e a recomendação: repouso total. Eu estava tão cansada, dolorida e fragilizada que repousei totalmente. Um detalhe: na semana anterior, eu tinha lido o livro da Laura Gutman e estava com ele na cabeça. Tinha achado ele meio over. Faço análise há dez anos e nutro (ou nutria) um pouco de preguiça dessa abordagem meio quase mística. 

Pois bem. 

Fonte da Imagem: Etsy


Terça-feira 

Dia de grupo de amamentação no Espaço Nascente, que eu frequentei por algumas semanas, religiosamente. Nesta semana o Cacá ia conduzir a conversa. E tinha pedido pra eu ir pra ver como a mastite estava. Eu fiquei o tempo inteiro ali quieta, à beira das lágrimas. Estava exausta e frustrada. O Cacá me perguntou, no meio de todo mundo, como estava minha situação. Contei a história e pela primeira vez notei que era tudo num peito só. O Cacá chamou a atenção para uma leitura possível, nem lembro da onde, de que cada lado do corpo simboliza um ramo da família, um lado é do pai e o outro da mãe. 

Eu voltei pra casa e enfiei na cabeça que ia decifrar esse enigma. O meu marido estava dando conta de cuidar da casa, de mim e do Tomé, então eu me permiti ficar quieta e mergulhar. Vou tentar descrever aqui a linha de pensamentos, é uma brisa, meio papo de maluco, mas vamos lá. 

Comecei pensando na história que abre esse relato. Sangue com leite. Isso tinha transformado a amamentação em uma coisa “nojenta” na minha cabeça. Leite com sangue, que nojo. Fui me entregando para essa ideia do nojo e percebi que sentia um incômodo quando escorria leite do meu peito - sentia nojo do meu leite jorrando. Comecei a tentar retraçar minha relação com meu peito e me lembrei que quando eles começaram a brotar, na adolescência, meu pai fazia uma “piada” que me deixava desconfortável: ele chamava meus peitinhos de “espinhas inchadas”. Espinha tem pus. Era leite, sangue e pus. 

Quando eu fui me levantar para receber uma amiga, senti uma dor absurda na virilha. Era um abcesso gigante. Na verdade eram dois, enormes e interligados. Pensei: meu corpo está me dizendo pra eu ficar quieta, deitada. Era impossível andar. Ouvi o recado e fiquei deitada por três dias (levantava só pra tomar banho). E me deixei levar pelas sensações que aquelas descobertas sobre a minha relação com o meu peito despertavam em mim. Fiquei triste triste triste, por perceber como meu corpo não tinha sido muito bem elaborado na minha cabeça adolescente. Fiquei angustiada, porque o meu peito doía demais e eu não conseguia pegar o Tomé no colo. Fiquei frustrada, porque amamentar deveria ser bom. Fiquei desmontada, porque tudo era desconforto. E fiquei entregue aos cuidados do meu marido, que me acalmava e me acolhia. Em algum momento, cheguei no meu limite e decidi: se até a semana que vem isso não resolver, vou parar de amamentar. É melhor ele tomar leite artificial e poder ser ninado, do que tomar leite materno mas não ter colo materno. 

Sexta-feira 

O Rafa tinha uma reunião de manhã. Ficamos sozinhos, eu e o Tomé. Eu só conseguia andar se afastasse muito a perna, tipo hipermanca. Fui assim até o banheiro trocar o Tomé pela manhã. E o abcesso rompeu. Não vou descrever, só digo que foi muito forte e era muito... sangue e pus. Foi doido e doído. Eram exatamente as coisas que vieram à minha cabeça quando eu tentei achar os meus obstáculos. Eu chorei de emoção e alívio. Sem a dor do abcesso, eu consegui perceber que não sentia mais a dor da mastite (afinal, estava tomando antibiótico e analgésico). E a dor da candidíase também havia melhorado. E meu espírito era outro. Tiramos o fim de semana para descansar os três bem juntos e recompor a harmonia da família. Finalmente eu consegui sentir prazer em amamentar e me entregar às longas mamadas. Finalmente - e graças ao muito apoio, muito apoio mesmo - eu consegui me entregar.