quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Por que não querem dormir sozinhas?

Trecho do Livro "Besame Mucho" de Carlos Gonzalez

[...] essa espécie de terror que aflige as crianças quando acordam na noite ou na solidão.
ALEXANDRE DUMAS, Vinte anos depois

Onde dormiam os bebês há 100.000 anos? Não havia casas, não havia berços, não havia roupa. Sem dúvida dormiam junto à mãe ou sobre ela, em um leito improvisado de folhagem. O pai não devia dormir muito longe, e a tribo estava a apenas alguns metros de distância. Só assim podiam sobreviver durante o sono, o momento mais vulnerável da sua jornada. Uma lembrança daqueles tempos é o costume dos esposos de dormir juntos e o mal estar que nós, adultos, costumamos sentir quando uma viagem nos obriga a dormir separados do nosso parceiro. Muitas mães, se o marido dorme fora, "deixam" que os filhos venham para a sua cama, e nem sempre é fácil dizer qual dos dois encontra mais consolo na companhia.

Pode-se imaginar um bebê sozinho, sem roupas, dormindo no chão ao ar livre, a cinco ou dez metros da mãe durante seis ou oito horas seguidas? Ele não teria sobrevivido. Tinha que existir um mecanismo para que, também de noite, o bebê estivesse em contato contínuo com sua mãe, e novamente o mecanismo é duplo: a mãe deseja estar com o filho (sim, apesar de todos os tabus contra isso, muitas mães ainda o desejam) e o bebê resiste violentamente a dormir sozinha.

Dormir sozinho! O grande objetivo da puericultura do século XX! Como comentamos, um bebê a quem a mãe pudesse deixar sozinho, acordado, no chão, sem reclamar imediatamente, mas que ainda por cima dormisse, dificilmente teria sobrevivido durante mais do que algumas horas. Se alguma vez houve bebês assim, eles foram extintos a milhares de anos (Bom, não todos. Falam de bebês que dormem a noite inteira, espontânea e voluntariamente. Se o seu é um desses raros bebês, não se assuste, também é normal). Nossos filhos estão geneticamente preparados para dormir em companhia.

Para um animal, o sono é um momento de perigo. Os nossos genes nos impulsionam a mantermo-nos acordados quando nos sentimos ameaçados e a deixar-nos levar pelo sono somente quando nos sentimos seguros. Sentimo-nos ameaçados num lugar desconhecido, e muita gente têm dificuldade em dormir em hotéis porque "estranham a cama". Temos dificuldade de dormir na ausência do nosso companheiro ou na presença de desconhecidos.

Você tinha que trocar de trens numa cidade distante e perdeu a última conexão. São duas da manhã, está tudo fechado e você tem que esperar na estação pelo trem das seis. Imagine agora várias situações possíveis: a) Você está completamente sozinha na sala de espera; b) Você viaja sozinha, mas na sala há uma dezena de pessoas, duas famílias completas, algumas senhoras idosas, um grupo de escoteiros; c) na sala só estão você e cinco jovens de cabeça raspada meio bêbados; d) você viaja na companhia do seu marido e de outros casais amigos.


Acha que adormeceria do mesmo modo em cada uma das circunstâncias?





Estranhos na noite

Onde quer que ela estivesse, ALI era o Éden. 
MARK TWAIN, O diário de Eva

Gabriel, de dezoito meses, "é ruim para dormir". Volta e meia chama a mãe, Maria: quer ouvir uma história, quer água, tem dodói... Cada noite se converte em uma tortura para toda a família. "Ele está te fazendo de boba - todos dizem - você devia deixá-lo chorar, não faz mal nenhum". Hoje, Maria e Gabriel foram visitar os avós no seu vilarejo perdido. O papai está trabalhando e não pode ir. Eles têm de trocar de ônibus numa pequena cidade. Mas o ônibus que vem da capital atrasou várias horas, e Maria e seu filho são os únicos que descem na solitária rodoviária, à uma e meia da manhã. O ônibus que vai até o vilarejo dos avós não até as sete e meia da manhã. Mãe e filho estão sozinhos na sala de espera mal iluminada. A estação de ônibus está nos arredores da cidade, separada das primeiras ruas habitadas por algumas árvores e por uma zona de fábricas e armazéns. Maria não se atreve a ir até o vilarejo andando. Ao lado da estação há um posto de gasolina. Ela pedirá ao encarregado que lhe chame um táxi, deve haver um hotel nessa cidadezinha... Será que ela tem dinheiro suficiente? Ela descobre apavorada que tem dinheiro suficiente apenas para o ônibus e que se esqueceu de pegar o cartão de crédito. Bom, afina são apenas cinco horas, será melhor esperar aqui. A luz acesa no posto de gasolina lhe dá certa segurança. Ela quase preferia esperar no posto, mas está do lado de fora.

De vez em quando passa um carro rápido ou ouve-se das fábricas, um latido de um cachorro. Perto das três da manhã, chegam cinco motoristas com jaquetas de couro, param entre a rodoviária e o posto de gasolina e começam a beber cerveja, gritando e brigando.

Às vezes um deles se aproxima da rodoviária ostensivamente e urina numa árvore, enquanto os outros riem e tiram sarro ("deixa de ser burro, José, você não vê que tem uma senhora? ,  "Não lolhe senhora, que não vale à pena, o dele é muito pequeno!"). E isso dura mais de uma hora e meia.

Maria, é claro, passou as lentas horas acordada, no assento mais perto da porta, agarrada ao filho e à bolsa. Gabriel, por outro lado, dormiu ao colo dela direto, sem acordar. Quem té que é "ruim para dormir"? No colo da mãe, numa cidade remota, rodeado por desconhecidos hostis, Gabriel se sentiu mais seguro do que em sua própria casa, no seu próprio quarto, no seu próprio berço. Para uma criança desta idade, a Mamãe é a Super Mamãe, a Protetora Invencível. Esse colo é o seu lar, sua pátria, seu paraíso. Não é maravilhoso, mamãe, sentir-se assim?


Na noite dos tempos

E se tem filhos, quando vivam, não remove nada nas suas entranhas?
VICTOR HUGO, Corcunda de Notre Dame

Naquela tribo, há 100.000 anos, duas mães foram dormir com os filhos. Não sabemos exatamente como elas faziam, mas sabemos o que fazem os chimpanzés atualmente : ao cair da noite, cada adulto prepara um leito macio com folhas e ramos e vai dormir. Os chimpanzés não tem camas de casal, o macho e a fêmea dormem separados (embora não muito distantes, é claro; todos na tribo, dormem perto uns dos outros). E mãe e  filho dormem juntos até que o filho tenha uns cinco anos.

No meio da noite aquelas duas mulheres primitivas acordaram por motivos que desconhecemos, começaram a caminhar, deixando seus filhos no chão. Uma das crianças era daquelas que acordam a cada hora e meia; a outra era dos que dormiam a noite toda, sem acordar. Qual deles você acha que não acordou nunca mais? Ou melhor, os dois acordaram ao mesmo tempo, mas um começou a chorar imediatamente enquanto o outro não começou a chorar até umas três horas depois, quando sentiu fome. Qual morreu de fome? 

Um começou a chorar imediatamente, e o outro ficou calado até que a aparição de uma hiena o assustou. Qual foi comido pela hiena? Um, quando começava a chorar, não parava até que sua mãe voltasse e o tranquilizasse: ele poderia chorar por meia hora, uma hora, todo o tempo necessário, até o esgotamento. O outra, pelo contrário, chorava por alguns minutos e, se não vinha ninguém, voltava a dormir. Qual dos dois dormiu para não acordar nunca mais?

Adivinhou: os nossos filhos estão geneticamente preparados para acordar periodicamente. Os nossos filhos herdaram os genes dos sobreviventes, dos vencedores da dura luta pela vida.

Não dormem a noite toda sem acordar, mas tem, assim como os adultos, vários ciclos de sono ao longo da noite. A duração de cada ciclo é variável, entre apenas vinte minutos e um pouco mais de duas horas; a duração média é de uma hora e meia para o adulto, mas apenas de uma hora para o bebê. Entre cada ciclo, passamos por uma fase de "despertar parcial", que é facilmente convertida em despertar completo.

Até mesmo os especialistas em "ensinar as crianças a dormir" reconhecem esse fato: o objetivo de seus métodos não é conseguir que a criança não acorde, isso é impossível. O que querem é que, quando acordar, em vez de chamar os pais, fique calada até dormir de novo.

As crianças "estão de guarda" para ter certeza de que a mãe não foi embora. Se o bebê sente o cheiro de sua mãe, pode toca-la, ouvir sua respiração, talvez mamar, volta a dormir imediatamente. Em muitas das mamadas, nem a mãe nem o filho despertam completamente. Mas, se a mãe não está, a criança acorda completamente e começa a chorar. Quanto mais tempo tiver chorado até que sua mãe o acuda, mais nervoso ficará e mais difícil será para consola-lo.


Um planeta, dois mundos

Mas - explode indignado - aqui em Milão essas crianças tão pequenas não dormem com seus pais? Quem cuida delas, então? 
JOSÉ LUIZ SAMPEDRO, O sorriso etrusco

Em outras culturas a prática da cama compartilhada é praticamente universal (e, consequentemente, os problemas de sono durante a infância, são praticamente desconhecidos). A psicóloga Gilda Morelli e seus colaboradores estudaram detalhadamente o comportamento e as opiniões de um grupo de 14 mães guatemaltecas de etnia maia e as compararam com as de 18 mães norte-americanas brancas de classe média.

Todas as crianças maias (entre os dois e os vinte e dois meses) dormiam na cama com a mãe, e oito delas dormiam também com o pai. Outros três pais dormiam no mesmo quarto,  em outra cama (dois deles com outro filho mais velho) e em três casos o pai estava ausente. Em dez casos havia outro irmão dormindo no mesmo quarto, quatro deles na mesma cama. As outras quatro crianças não dormiam com os irmãos porque eram filhos únicos.

As crianças maias ficavam com a mãe e mamavam em livre demanda até os dois ou três anos, pouco antes do nascimento de um irmãozinho. As mães normalmente não notavam se a criança mamava a noite, porque não acordavam e achavam que o tema não tinha importância (por outro lado, 17 das 18 mães norte-americanas tinham de acordar para alimentar o filho, a maioria durante seis meses, e as 17 disseram que as mamadas noturnas eram um incômodo).

Entre os maias não existia uma rotina para fazer as crianças dormirem. Sete dormiam com os pais e as outras dormiam no colo de alguém. As 10 que ainda mamavam no peito, dormiam no peito. Não liam histórias para dormir nem davam banho nos bebês antes de deitar. Somente uma das crianças tinha uma boneca com a qual dormia; era a única que não tinha dormido com a mãe desde o nascimento e que tinha passado alguns meses dormindo em um berço no mesmo quarto, para depois voltar para a cama materna.

As mães maias não concebiam que as crianças pudessem dormir de outra maneira. Quando explicaram que as crianças norte-americanas dormem em um quarto separado, demostravam assombro, desaprovação e compaixão. Uma exclamou:"Mas alguém fica com eles, não é?" A cama compartilhada não é uma consequência da pobreza ou da falta de quartos, mas é considerada fundamental para a educação correta da criança. As mães explicavam, por exemplo, que, para dizer a uma criança de 13 meses que ela não podia tocar em alguma coisa, bastava dizer-lhe "Não toque nisso, não é bom, pode fazer dodói" e a criança obedecia. Ao explicar a elas que as crianças norte-americanas dessa idade não compreendiam proibições ou que faziam mesmo o contrário, uma mãe maia sugeriu que esse comportamento era consequência de tê-las separado dos pais durante a noite.

É apaixonante comparar como se criam as crianças em diferentes culturas. Uma antropóloga norte-americana, Meredith Small, escreveu um livro imprescindível sobre este tema intitulado Our babies, ourselves. 


Todas as Ilustrações desse texto são da artista sueca Majali.
Fonte das imagens: Etsy