quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Infância intoxicada

Por Dioclécio Campos Júnior
Médico, pesquisador associado da UnB, secretário de Estado da Criança do DF, foi presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria.


Contra fatos não há argumentos. Falam por si mesmos. Não há como desmontá-los. Muito menos ignorá-los, como se inexistissem. As versões que despertam podem divergir, porém não os extinguem. A realidade que lhes é inerente independe de elucubrações emocionais. Tem cunho existencial próprio. A verdade irrefutável que representam está na arquitetura do conteúdo, não na fugacidade da aparência. As versões esgotam-se. Os fatos podem ser devastadores, se não reconhecidos na essência.

Assim caminha a sociedade humana. Convive com excrescências. Faz de tudo para ocultá-las. Implode o patrimônio ético que, convertido em pó, asfixia direitos e restringe a respiração moral. Como tudo na vida tem preço, não só monetário, as novas gerações pagam caro pelas mudanças de hábito a que o progresso material do mundo moderno as tem induzido. A moeda de troca é devastadora. A efígie que lhe confere marca tem a cara de uma nova morbidade, cujos sinais e sintomas são fatos concretos.

A doença em curso ainda não possui nomenclatura própria. Mas o reconhecimento da síndrome que permite diagnosticá-la dispensa recursos tecnológicos. Os danosos componentes socioambientais que a constituem afligem cidadãos que vivem na sociedade capitalista de hoje. A tríade sintomática é assustadora, assume dimensão quase epidêmica. De fato, violência de toda natureza degrada a vida mundo afora; dependência química contamina parcelas crescentes da população; obesidade avança irrefreável. A gravidade dos efeitos que tais distúrbios produzem sobre as pessoas é evidente. Nem carece de comprovação.

Outra verdade consagrada volta à tona. Não se erradica morbidade por meio de tratamento puramente sintomático. Identificada a causa, somente ações preventivas são capazes de enfrentá-la com eficácia. Tudo o mais recai na categoria de medidas protelatórias de elevado custo e baixo alcance curativo. Combater violências, esvaziar cracolândias, facilitar acesso à cirurgia bariátrica são práticas imediatistas que ajudam, mas não resolvem.

A causa maior da morbidade que assola a espécie no novo milênio já foi descoberta. Pela natureza dos transtornos psicossomáticos que desencadeia, a enfermidade é vista como uma forma de intoxicação iniciada na infância. Trata-se de fenômeno definido como estresse tóxico, desde os anos 1970. Consiste em transtornos provocados na estrutura cerebral em construção, alterando o crescimento e a diferenciação do projeto original do novo ser humano oriundo do processo de fecundação. Decorre do esvaziamento da convivência familiar, precariedade social que expõe a frágil criatura ao desamparo afetivo, às carências em que é obrigada a sobreviver, às agressões diversas que a subestimam. É o cenário estressante que intoxica a infância dos novos tempos. Os danos derivados desse hedonismo egocêntrico da atualidade são flagrantes.

Estudos científicos demonstram que a gênese dos desajustes comportamentais de adolescentes e adultos concentra-se nos primeiros anos de vida. O impacto do estresse crônico sobre a tenra infância resulta na produção endógena aumentada de substâncias que causam desestruturação desconcertante do cérebro. Uma delas é o hormônio chamado cortisol. Não só desfaz conexões existentes entre as células cerebrais, como inibe o estabelecimento de outras.

As repercussões do estrago são previsíveis. Prejudicam a conduta, os hábitos alimentares, a educação, a economia e a saúde ao longo de décadas da vida, adoecendo gerações inteiras. As doenças infecciosas perdem terreno para a nova morbidade. O desafio das iniciativas requeridas para conter a intoxicação da infância é imenso. As autoridades que não o percebem devem ser substituídas, sob pena de aprofundarem a catástrofe que se avizinha.

A formação dos profissionais de saúde, particularmente a do pediatra, precisa ser estendida na duração e reformulada no conteúdo. E como infelizmente o lar já não existe, a criança deve passar a maior parte do tempo fora de casa. Não em qualquer lugar, mas em espaço seguro, livre do estresse, apropriado ao teor lúdico que merece, rico na estimulação cognitiva a que tem direito, povoado por entes afetivos que a entendam, provedor da nutrição que lhe assegure crescimento saudável. Eis o investimento preventivo que os governos prometem e não fazem. Que a sociedade começa a entender, sem ensejar. Conforme disse Frederick Douglass, no século 19, “é muito mais fácil construir crianças fortes que reparar homens quebrados”. É o afeto agora ou a droga logo mais.

Fonte:
http://giovanimiguez.com/
Publicação: 08/02/2012 – Correio Braziliense